Este é um espaço para a reflexão de temas que em algum momento e por alguma razão (do meu contexto pessoal ou da minha prática clinica) se tornaram, usando uma expressão gestáltica, importantes FIGURAS no imenso FUNDO existencial.

19 de maio de 2013

Diante da crítica - a importância do outro no processo de autoconhecimento

Em O trabalho com a sombra mencionei que a forma mais eficiente para adquirirmos um conhecimento aprofundado sobre nós mesmos, e principalmente sobre nosso lado obscuro, é por meio do olhar do outro. 

Na análise, esse processo de ampliação da consciência e de assimilação de nossas porções inconscientes ocorre em parceria com o analista, que usa suas técnicas, seu arcabouço teórico e, principalmente, sua sensibilidade ("timing") para ajudar o analisando a ter insights e gradualmente obter uma melhor compreensão do seu funcionamento psíquico inconsciente. Só que essa experiência de autoconhecimento, apesar de ter no setting terapêutico um lugar privilegiado, não se restringe apenas ao contexto psicoterápico. Estamos cotidianamente diante da oportunidade de crescimento pessoal, pois estamos sempre recebendo importantes feedbacks das pessoas que convivem conosco. Ora são diretos, ora surgem nas entrelinhas, mas o que não muda é a dificuldade que normalmente sentimos em aceitá-los. 

Em "Diante da crítica", Carlos Hilsdorf apresenta interessantes reflexões sobre como lidar com os feedbacks que recebemos. Não conhecia o autor até ter tido, por acaso, acesso a esse texto. Após uma pequena pesquisa sobre ele, confesso que não me interesso por nenhum do seus livros e sei que não teria me interessado caso tivesse esbarrado com algum deles numa livraria. Mas, por considerar válidas e pertinentes suas pontuações sobre o desenvolvimento da competência para suportar e aproveitar as críticas, compartilho na íntegra seu artigo. 



DIANTE DA CRÍTICA
Carlos Hilsdorf


Quando desenvolvemos uma competência nos tornamos mais fortes diante da vida e de seus desafios. Dentro do rol das melhores competências que podemos e devemos desenvolver encontramos uma que nitidamente se destaca: a nossa competência em suportar a pressão das críticas!

As críticas se dividem em dois grandes grupos: as construtivas e as destrutivas.

Uma crítica é construtiva quando tem por finalidade contribuir com o nosso aperfeiçoamento. Por aperfeiçoamento devemos entender o foco em aprimorar nossas forças e diminuir nossas fraquezas.

No caso da crítica construtiva, quem o está criticando vai sempre lhe apontar uma deficiência (fraqueza) ou falta de eficiência (uma força que não está sendo plenamente ou corretamente utilizada). Em ambos os casos esta pessoa está lhe fazendo um favor porque está lhe ajudando a ampliar suas percepções a respeito de si mesmo.

Não é raro que alguém lhe faça uma crítica inesperada. Nestes casos nossa primeira reação é a surpresa seguida imediatamente do julgamento de que a crítica só pode ser absurda e improcedente. É comum julgarmos absurdo ou improcedente aquilo que não passa pela nossa cabeça. Mas isto não invalida a importância da crítica! 

Quanto mais rara for uma crítica, tanto mais importante ela tende a ser, portanto infinitamente maior a importância de a ouvirmos com atenção e refletirmos em profundidade sobre ela.

Diante de críticas construtivas o procedimento é simples. Ouça com toda a atenção, independentemente de suas impressões e julgamentos com relação ao autor da crítica. Desenvolva um profundo respeito e gratidão pelas críticas construtivas, elas são sempre um convite ao aperfeiçoamento e um poderoso remédio contra a vaidade.

Atente para uma questão muito importante: o fato da intenção da crítica ser construtiva não significa que a pessoa que a fez tenha habilidade em comunicá-la da melhor forma. Gentileza, boa educação e habilidade interpessoal não são características comuns a todos os bem intencionados. Isto significa que em muitas situações uma crítica construtiva, que muito pode contribuir com sua vida, poderá vir em péssima ''embalagem''. Preste mais atenção no conteúdo da crítica que na sua forma. Conheço várias pessoas de valor, sinceras e bem intencionadas que não sabem dizer as coisas com ''jeitinho''. Afinal por que esperar que as críticas venham apenas de pessoas craques em relacionamento e comunicação?

Vejamos agora as críticas destrutivas.
Uma crítica é destrutiva quando tem por finalidade desestruturar, ferir, magoar ou desorientar. Observe que o fato de você ter se magoado não significa, necessariamente, que a crítica tenha sido destrutiva. Alguém pode se magoar por tendência em colocar-se no papel de vítima, baixa auto-estima, falta de humildade ou excesso de vaidade, e nestes casos a responsabilidade pela mágoa é toda sua.
A crítica é destrutiva quando é apresentada com o objetivo claro de causar dano ou ofensa, visando impedir seu processo natural de evolução. Esta é uma arma muito utilizada por pessoas presas aos processos de inveja, ciúme e maldade.
Mesmo nestes casos, ouça atentamente a crítica. Lembre-se que alguém na tentativa de magoá-lo pode, ainda assim, dizer-lhe uma verdade. Seus oponentes podem ser pessoas inteligentes e a crítica apesar de maldosa, pode conter elementos verdadeiros.
Neste caso este ''oponente'', por ironia do destino, estará lhe fazendo um bem, desde que você possua a humildade de analisar e refletir sobre o conteúdo da crítica!
Caso a crítica esteja fundamentada em conteúdo falso, maledicente ou preconceituoso, considere que não se atiram pedras em árvores sem fruto; toda tentativa de apedrejamento visa sempre derrubar os frutos. Inocente ignorância dos apedrejadores, porque, mesmo conseguindo o feito, se esquecem de que os frutos caídos no chão experimentarão o tempo e a decomposição e voltarão a frutificar, de uma ou de outra maneira, pois cada semente dá origem à essência interior que carrega. Já as pedras caídas no chão permanecerão pedras, e as mãos que as atiraram terminarão vazias, tão vazias quanto o coração e a alma que lhes ativaram o movimento.

12 de maio de 2013

Dia das Mães

Mãe Divina, Grande Mãe, Arquétipo da Mãe, constelação do complexo materno e seus diferentes efeitos no filho e na filha... não, não quero falar da mãe arquetípica, muito menos do que pode dar errado nessa relação que todas as psicologias, sem excessão, concluiram ser fundamental. Em Sobre os filhos já teci, inspirada em Khalil Gibran, algumas dessas reflexões "psicopatológicas" e aos interessados em conhecer um pouco mais da perspectiva junguiana a respeito da influência da mãe sobre seus filhos, recomendo "Aspectos psicológicos do arquétipo materno" no volume "Os arquétipos e o inconsciente coletivo", da obra de Jung.

Também não quero falar da mãe que "é tempo sem hora, luz que não apaga quando sopra o vento e chuva desaba" (Carlos Drummond de Andrade). Não é da mãe "sobre-humana" que a "tudo dá um jeito" e que nunca falha ou que não pode nem se quer morrer! É claro que compreendo a beleza do sentido de eternidade dado à mãe por Drummond; mas não são os poetas (homens!), imbatíveis nos seus mais belos enaltecimentos da "imagem da mãe", que hoje falam à minha alma.

Quero, no meu terceiro Dia das Mães, contemplar a "mãe real", de carne e osso, de Luz e Sombra... E encontro na "Carta ao meu filho" de Isabela Crema, um texto demasiadamente humano, e que talvez por isso mesmo me pareceu divino e digno de ser compartilhado no dia de hoje!

 
Filho

Quero, antes de qualquer coisa, agradecer-te.
Agradecer-te por ter-me escolhido para ser sua mãe, dentre milhões de outras possibilidades.
Quero agradecer por ter chegado e virado minha vida de cabeça pra baixo, revelando o que há de melhor em mim...
Agradeço por revelar-me o oceano de Amor que habita minh’alma...
...por mostrar-me o encanto do desabrochar da vida e da consciência dentro dos seus olhos profundos, desde o primeiro instante em que saíste de dentro de mim...
...por inundar-me de um Amor tão puro e transbordante com seus sorrisos, seus trejeitos, suas graças e conquistas diárias rumo a liberdade à ti destinada.
Agradeço por fazer-me exercitar a musculatura da paciência dentro de mim, fazendo com que eu me torne, a cada dia, uma pessoa mais forte, mais tolerante e, portanto, melhor.

Filho, agradeço-te por ter virado minha vida de cabeça pra baixo e revelado o que de pior há em mim...
Compreendi, com sua chegada, que os filhos vêm do tamanho exato da nossa ferida e chegam para nos brindar com a oportunidade de lapidarmo-nos, de transformar e limpar a sujeira que jaz na mais profunda escuridão do nosso ser.
Agradeço por mobilizar-me diariamente com dificuldades que  trazem à tona tantas dores, tantos pactos, tantos sentimentos ocultos, negados ao longo de toda uma vida e, assim, dar-me a oportunidade diária de lançar LUZ sobre a minha sombra e dar passos concretos rumo à cura de minhas feridas.
Filho, agradeço-te por me brindar com a coragem de olhar para isso tudo e seguir no meu caminho de transformação me mostrando, na doçura do teu olhar e na pureza dos teus gestos, que eu posso ser, hoje,  uma pessoa e, logo, uma mãe melhor do que a que fui ontem.

Te agradeço, filho, e também te peço perdão...
Te peço perdão por cada vez que minhas dores me cegaram nos momentos de cansaço...
... por cada vez que te tratei como uma criança que não sabe o que quer e tomei decisões que não levavam em  consideração o seu desejo, a sua emoção, os seus sentimentos.
...por cada vez que o cansaço me consumiu e eu deixei-me anestesiar com atividades que me tornaram indisponíveis para você, mesmo estando dentro da mesma casa, da mesma sala...
...por cada vez que fui incapaz de decifrar a sua dor e a rotulei de manha e de chatice...
...por cada vez que fui incapaz de ler os teus sinais e acabei por exceder os seus próprios limites. Os seus e, também, os meus.
Peço perdão, filho, por tantos erros cometidos e por tantos erros que ainda cometerei, pois, filho, devo lembrar-te que escolheste uma mãe humana.
Uma mãe humana, cheia de defeitos e limitações...
Mas pode confiar filho! Escolheste uma mãe humana que, além de tantas contradições e limitações, tem também uma sede profunda pela transformação. 
Uma mãe cujo desejo de curar suas feridas e se tornar uma pessoa a cada dia melhor arde na alma e no coração...
Irei te decepcionar muitas vezes, filho... mas uma coisa posso prometer-te, meu amor... prometo-te estar sempre à caminho do meu ser real que é capaz de acolher-te e amar-te totalmente!

Filho amado do meu coração! Te agradeço, te peço perdão... e também te peço paciência.
...peço sua paciência pois sei que nascestes milhões de anos luz à minha frente e sei que vens de uma Tribo que vibra um som muitas oitavas acima da minha capacidade.
Peço sua paciência pois sei que tenho algumas coisas a te ensinar, mas sei também que tu tens um Universo inteiro a descortinar  diante dos meus olhos encantados e mareados de emoção...
Peço sua paciência, filho, pois desejo ser capaz de aprender tudo aquilo que o brilho do profundo dos teus olhos me anunciam.

E peço ao Universo, meu Amor, que eu saiba adubar bem a terra em que você se plantou com respeito total, conexão, justiça e nutrição... que eu saiba regar a sua terra com água cristalina, pura, límpida, refrescante e fluida, repleta de sentimentos e emoções verdadeiras... que eu saiba deixar passar toda a LUZ necessária para fazer brotar sua semente plenamente, para despertar, à cada dia, o teu ser e a tua missão... que eu saiba permitir que os ventos e os vendavais da vida cumpram sua missão de esculpir o seu ser, sem cair na armadilha da superproteção que sufoca e faz morrer a criatividade e a espontaneidade que tanto amo em ti.

Eu peço ao Universo, meu amor, que eu saiba, neste mundo de tanta concretude e concreto, ajudá-lo a manter os seus canais de comunicação com os anjos e as fadas, com os teus guias e aliados, com a beleza vibrante da vida e todas as formas de expressão do Grande Mistério nesta vida terrena, sempre limpos e livres para expressarem-se da forma que tiver de ser.

Eu te AMO, filho... e agradeço-te, do fundo da minha alma, por fazer-me reconhecer a fonte de amor que há em meu coração e por inundar-me diariamente com o ímpeto de fazer esta fonte jorrar e transbordar o meu ser.

Que eu saiba honrar tudo o que és...
Que eu saiba honrar tudo o que sou...
Que eu saiba honrar tudo o que somos...  
...agora e sempre...

"Nada posso lhe oferecer que não exista em você mesmo. Não posso abrir-lhe outro mundo além daquele que há em sua própria alma. Nada posso lhe dar, a não ser a oportunidade, o impulso, a chave. Eu o ajudarei a tornar visível o seu próprio mundo, e isso é tudo." 
Herman Hesse

Isabela Crema, 10/05/2012

10 de maio de 2013

"Estou me sentindo tão mal, desprezível, miserável'" - O contato errôneo e nocivo com a sombra.


"Não há despertar de consciência sem dor. 
As pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo
 para evitar enfrentar sua própria alma; 
 ninguém se torna iluminado por imaginar figuras de luz, 
mas sim por tornar consciente a escuridão".
                                                                                                                                        C.G.Jung


    A honestidade é, sem dúvida alguma, essencial para o enfrentamento da sombra, aquela nossa faceta que compreende os aspectos de nossa personalidade que são difíceis de aceitar, dolorosos de serem reconhecidos.
     Quando a sombra emerge em nossas interações cotidianas, colocando-nos em "maus lençóis", de duas uma: ou ela destrói nossa auto-estima e passamos a nos sentir o ser mais desprezível; ou somos impelidos à racionalizações e saímos supostamente ilesos do contato com as nossas verdades desagradáveis. Ou caímos na autoflagelação ou projetamos o mal e o erro no outro e nos esforçamos ao máximo para encontrar explicações irrefutáveis que justifiquem nossas ações. Em ambos os casos a árdua necessidade de integração de nossos aspectos inferiores é minada.

Todos nós sabemos, ou deveríamos saber, da dor e da delícia de sermos quem somos. Mas só quem verdadeiramente não fechou os olhos para a dor, a vergonha e o desespero que surgem do reconhecimento de que somos possuidores de sentimentos/atitudes infantis, egoístas, invejosas, arrogantes, competitivas e por aí vai... pode realmente ser honesto consigo mesmo e, por consequência, com o outro.
 Precisamos nos olhar com sinceridade, tirar da sombra (da inconsciência) tudo o que foi escondido por ser inaceitável, mau, mesquinho ou fraco. Mas a honestidade não é suficiente! Esse desnudar-se sem pudores pode realmente ser letal, altamente desestruturante e nocivo. E é justamente por causa do medo da desintegração que nossa habitual resistência para olhar o nosso lado sombrio se reedita sucessivamente a cada nova oportunidade de ampliação da consciência. Mas como pode ser letal a conscientização de algo que ao ser aceito, trabalhado e integrado nos conduzirá inevitavelmente  ao crescimento?
     São inúmeras as respostas, mas todas estão, de uma forma ou de outra, enredadas num mesmo ponto: a honestidade necessária é usada contra e não a favor do crescimento. As principais molas propulsoras deste casamento entre honestidade e "autodestruição" são, dentre tantas outras, as seguintes:

1- A influência, mesmo que indireta ou inconsciente, da tão disseminada cultura cristã do pecado. Diante de nossos "pecados", passamos a nos conceber como impuros, não merecedores da "graça divina" e altamente suscetíveis ao castigo, à punição e à interdição no "paraíso". É o medo de sermos, em essência, maus, sem salvação, ou indignos de amor que nos aliena do contato como nosso lado negativo (que continua a atuar mesmo quando não é "convidado"). Rejeitamos a sombra por medo de que ela seja a síntese de tudo o que somos!

2- A crença de que seremos menos amados por aqueles que nos são significativos, ou pior ainda, por nós mesmos. Diante do contato com nossos "nós-cegos", experimentamos a baixa de nossa auto-estima e o medo paralisante de estarmos sendo julgados, difamados, depreciados, rejeitados pelos os outros. A nossa sensação de segurança e valor são (desnecessariamente) perturbadas pelo contato realista com as inerentes "monstruosidades" que compõem nossa vasta vida interior. E seguimos lutando para manter uma "auto-imagem idealizada", a nossa persona, que deve ser sempre certa e boa, e nunca errada e má.

3- A identificação rígida com o ego e a crença de que ele é a nossa autoridade máxima e de que sua lógica de funcionamento e de "leitura" do mundo é a única existente. Neste contexto, qualquer golpe a magnificência e prepotência do ego é recebido como ilegítimo e sempre sentido de forma destrutiva, nunca como um convite ao crescimento e ampliação. Quando o ego assume unilateralmente a direção da vida, vivemos inconscientes de outras partes de nós mesmo: da sombra, da persona, da anima, do animus e, sobretudo do Self (o eu maior), aquele que nos convida (via sonhos, atos falhos, fantasias, sintomas) a mudar de rumo quando nossa atitude (perante a vida, os outros e a nós mesmos) está nos afastando da realização de nosso potencial.

     Reféns destas crenças acabamos por sucumbir à tentação de não sermos honestos com a existência do nosso lado pouco desenvolvido. E quando somos, caímos em desespero, desesperança. Ou o negamos ou nos emaranhamos na vergonha, na autopunição e na culpa. Mas a realidade é que não precisamos nem nos defender nem nos emaranhar na dor, que apesar de ser parte inevitável da consciência de nossos atos, não deve ser motivo de evitação ou paralisação. Se esperarmos alcançar a satisfação na vida e nas relações sem efetivamente encarar tudo o que bloqueia essa vivência, vamos permanecer em perpétua ilusão e nosso crescimento e realização pessoal tornar-se-ão eternamente incompletos ou mesmo inatingíveis.
     "O pulo do gato" é nos filiarmos à idéia de que não existe nada escuro de mais na psique humana a ponto de não poder ser transformado, desde que trazido à luz da consciência. E agora entra o ponto fundamental: não é apenas com honestidade que devemos iluminar o terreno sombrio de nós mesmos. Para realizarmos esta tarefa de forma segura é preciso, sobretudo, de respeito, amorosidade e compaixão. Nos punir por nossas imperfeições é o mesmo que cultivar a irreal idéia de que somos ou deveríamos ser indefectíveis. Essa ilusão torna o erro mais simples e inocente numa catástrofe para a nossa auto-estima.
     Aprender a acolher tudo o que há em nós é a única forma para desenvolvermos os vários "eus inferiores" que nos habitam e tanto nos prejudicam. A avaliação situacional e a auto-avaliação devem ser sempre objetivas e compassivas.
"Tornar-se um auto-observador amoroso é comparável a tornar-se um bom pai ou mãe de nós mesmos. Lentamente, aprendemos a nos amar incondicionalmente, amar em especial aquelas facetas nossas que são infantis, fracas ou imaturas. O bom pai reconhece os pontos fortes do filho e ajuda-o a desenvolver os pontos fracos. O bom pai aceita o filho por inteiro, incluindo os sentimentos negativos (...) Nossas facetas negativas podem ser encaradas como a criança imatura que habita em nós e precisa receber amor para 'crescer' e expressar-se de forma madura" (Susan Thesenga em "O Eu sem defesas", p. 61)
     Quando não recriminamos ou rejeitamos nossos aspectos imaturos, damos a eles aquilo de que mais precisam para crescer: aceitação.
"Muitas vezes assumimos uma postura de alarde ou desaprovação, ou até de desespero, quando descobrimos que estamos agindo ou sentindo de um modo não compatível com a auto-imagem idealizada. Mas nós não podemos mudar um comportamento cuja origem está nos nossos eus não desenvolvidos enquanto o comportamento e as atitudes subjacentes não forem levados à consciência. A autocondenação nos leva de volta ao repúdio dos nossos aspectos negativos que, dessa forma, nunca podem ser transformados" (Thesenga, p.57)
     É necessário, portanto, desenvolvermos esta capacidade de "testemunhar" com imparcialidade tanto os processos internos quanto os fatos externos. Só esta avaliação descomprometida com a busca da vítima e do culpado nos instrumentalizará adequadamente para enfrentarmos as crises que acompanham o confronto com nossas imperfeições e com a dos outros. A crise é, em essência, uma tentativa do Self de efetuar uma mudança:
"(...) Qualquer tipo de crise é uma tentativa de desintegrar as antigas estruturas de equilíbrio que se baseiam em falsas conclusões e no negativismo. Ela abala os modos de vida arraigados e estacionados para tornar possível o surgimento do novo. Ela dilacera e dissolve, o que é momentaneamente doloroso, porém, sem isso, a transformação é inconcebível. (...) Na verdade, ela pode ser uma etapa do crescimento quando permitimos que suas lições e a turbulência que acarreta na nossa vida revele níveis mais profundos de distorções ocultas que demandam atenção e transformação" (Thesenga, p. 44).
     Encarar honesta, realista e saudavelmente nossa sombra (nossos "pecados", neuroses, limitações, ignorâncias...) é necessário e urgente, pois mais cedo ou mais tarde, toda recusa a crescer ou a renunciar a velhas atitudes se voltarão contra nós. Resistir ao chamado para mais expansão de consciência e maior desenvolvimento pessoal e interpessoal é o mesmo que provocar mais dor e sofrimento. Diante da negação de que o crescimento pessoal não é apenas desejável, mas é inevitável, acabamos por encarnar o "Trabalho de Sísifo", expressão/metáfora das tarefas que envolvem esforços inúteis. Sísifo, personagem da mitologia grega, foi condenado a repetir a mesma tarefa de empurrar uma pedra da base de uma montanha até o seu topo, só para vê-la rolar para baixo dia após dia. Se não assumirmos o "O Trabalho com a Sombra", assim seguiremos: presos no ciclo do eterno retorno, reeditando dores do passado no presente...
"Todo defeito reconhecido, toda defesa desmantelada e toda dor sentida e liberada nos dão poderosas reservas novas de raciocínio e sentimento para criar uma vida voltada para novas direções positivas. Por outro lado, toda atitude negativa inconsciente, toda defesa mantida, toda dor negada tolhem a energia vital e limitam a consciência" (Thesenga, p. 43).

(O livro de Susan Thesenga "O Eu sem defesas: o método Pathwork para viver uma espiritualidade integral" foi a base para as reflexões aqui expostas. Vejo muita sintonia entre as propostas do Pathwork e a psicologia junguiana e, aos que se interessaram, recomendo a leitura do livro, pois abordei apenas as principais idéias dos três primeiros capítulos).

6 de maio de 2013

O Poder do Mito e o Laboratório do Self

Não conheço os palestrantes, mas a temática é interessante e pretendo prestigiar os colegas. Depois, assim como fiz com a palestra de Marcus Quintaes "A tristeza é azul: notas arquetípicas sobre a melancolia" , compartilharei aqui minhas anotações...

3 de maio de 2013

A dança da sombra no palco do casamento

Ventura, colunista de Los Angeles, num trecho de "A dança da sombra nos Estados Unidos", narra o encontro proporcionado pelo casamento com os seus "horrores" internos, que numa relação estável e duradoura puderam emergir do armário. O autor demonstra o quanto o matrimônio parece ser uma situação perfeita para que nossos "demônios" levantem suas cabeças e bravejem suas "verdades" e exigências.

O texto encontra-se no livro Ao encontro da sombra (Zweig e Abrams), no capítulo destinado às reflexões sobre os aspectos sombrios que emergem nos relacionamentos interpessoais. A idéia central é a de que "qualquer relacionamento íntimo pode servir como excelente veículo para o trabalho com a sombra, no qual o fogo do amor pode se alastrar pelos lugares imobilizados, iluminar os devãos escuros e nos apresentar a nos mesmos" (p.87).

Já postei um texto (O casamento como veículo para o trabalho com a sombra) deste mesmo livro e sobre o mesmo assunto. Quem tem interesse em se aprofundar no tema (ou em suas relações!) vale lê-lo também.

Ambos substanciam, de certa forma, a discussão levantada em Fidelidades perversas e traições leais, na qual reflito sobre o quanto algumas traições conjugais se configuram como uma tentativa de responder ao desígnio maior da alma (psique), que é se auto-realizar. Quando os padrões relacionais se mostram falidos, surge o convite da alma para a transgressão. Mas a grande questão é: devo trair o padrão ou trair o parceiro? Como muitos contratos matrimoniais (inconscientemente estabelecidos) não suportam modificações, trair o outro acaba por se tornar a única alternativa para não continuar traindo a si mesmo. Mas há de se considerar fortemente que não são todas as traições que se originam do desejo da alma por realização e crescimento, muitas são convites feitos pelo ego! Essa diferenciação é crucial para a legitimidade da proposta que apresento no post supracitado de que nem toda traição pode ser entendida apenas como um "desrespeito ao outro".


Acredito que os três textos (os dois do livro Ao encontro da sombra e o de minha autoria - Fidelidades perversas e traições leais) apontam possíveis respostas às perguntas:
"Por que tantos conflitos e desentendimentos conjugais?"
"Por que tantas separações?"
"Por que tantas desistências ou traições?"
 E principalmente, "Mudar de parceiro sempre que a crise se instala acreditando que com a pessoa 'y', 'x' ou 'z' vai ser diferente, é realmente a atitude que nos aproxima do tão idealizado 'viveram felizes para sempre'?".

A dança da sombra no palco do casamento

Michael Ventura

Jan e eu passamos direto da paquera para o casamento. Decidimos casar dez dias depois de nos termos conhecido. Isso nos poupou a tarefa de ficar não-conhecendo um ao outro, que em geral consiste naquela coisa triste que é um experimentando o seu "eu" no outro, testando de modo compulsivo e/ou intencional a capacidade de compromisso. Isso é necessário numa fase da vida mas, como muitos da nossa idade, já o tínhamos feito muitas vezes antes. Decidimos que dessa vez era sem teste. Iríamos dançar conforme a música. Casar conforme a música.
Casamos um com o outro ou casamos com o impulso? Boa pergunta. Uma pergunta que só pode ser respondida quando já é tarde demais. Melhor ainda. Pois o amor nada será se não houver fé. Nada.
Quando Brendan nasceu, quase nove anos antes de Jan e eu nos conhecermos, ela mandara imprimir nos cartões o refrão do velho blues:

Baby l learned to love you
Honey 'fore I called
Baby 'fore I called your name
(Baby, aprendi a te amar...antes de dizer...antes de dizer o teu nome”) 

        O amor geralmente acontece do jeito que diz essa velha canção. Como se amar fosse "dizer o seu nome". E, com certeza, "ser amado" é sentir que o nosso nome é dito com uma inflexão que nunca ouvimos antes.
E o nosso convite de casamento dizia assim:

Come on over
We ain't fakin'
Whole lotta shakin’ goin’ on
(Chega pra cá, não tamos brincando, tem muita coisa pra sacudir) 

        É esquisito, hoje, pensar como foi vaga a nossa premonição de usar esse verso de Jerry Lee Lewis — embora uma única vez tenhamos "chegado às vias de fato" (reveladora essa velha expressão, não é?, com esse estranho formalismo), e foi Jan quem começou, quebrou meus óculos, e então eu dei nela, uma vez só, e ela bateu contra a parede, nós dois nos sentindo tão sujos e feios e errados. Quantos avôs e avós, amargos e há muito idos, estavam na sala naquela hora, cacarejando de satisfação diante da nossa vergonha? Os dela, irlandeses; os meus, sicilianos. Duas tradições que não nos ensinaram a perdoar. Aprender a perdoar é romper com um passado imperdoável.
Pense na palavra: "perdoar"... "doar"... "dar". O perdão é um dom tão grande que o conceito de "dar" está contido na palavra "perdoar". A tradição cristã tentou tornar o perdão humilde e passivo: ofereça a outra face. Mas "dar" é um verbo ativo, que revela a verdadeira natureza do perdão: perdoar envolve o ato de tomar algo de si mesmo e dá-lo ao outro, para que de agora em diante lhe pertença, Não tem nada de passivo. É um intercâmbio. Um intercâmbio de fé: acreditar que aquilo que foi feito pode ser desfeito ou transcendido. Quando duas pessoas precisam fazer esse intercâmbio uma com a outra, esse pode ser um dos atos mais íntimos de suas vidas.
O perdão é uma promessa de trabalhar para desfazer, para transcender. O casamento muito cedo oferece aos envolvidos a oportunidade de perdoar. Houve muitas cadeiras quebradas, muitos pratos quebrados — até uma máquina de escrever quebrada, minha velha e amada Olympía manual portátil que estava comigo desde os tempos do colégio e que eu mesmo arrebentei — testemunhando quão desesperado pode ser o desespero conjunto de todos os Michaels, Jans e Brendans. Whole lotta shakin’ goin' on: tem muita coisa para sacudir... e, às vezes, quando você está tentando romper as crostas endurecidas dentro de si mesmo e dentro de cada um dos outros, alguns pratos e máquinas de escrever e móveis podem participar do processo.
O aspecto mais odioso dos "diga a si mesmo que está tudo bem" e "eu estou OK, você está OK" é a incapacidade deles de admitir que às vezes você precisa gritar, bater portas, quebrar móveis, avançar o farol vermelho e perder o controle só para poder começar a achar as palavras que descrevem essa coisa que está comendo você por dentro. Às vezes, a meditação e o diálogo simplesmente não conseguem removê-la. Às vezes ela precisa mesmo é de uma boa "cortada" — ou, pelo menos, a whole lotta shakin’, uma boa "sacudida geral". Quem tem medo de quebrar, por dentro ou por fora, está no casamento errado. Pôr tudo para fora. Escancarar as janelas. Depois da tempestade, vamos ver o que restou.
E isso é "o lenitivo que o casamento oferece" — ouvi essa expressão em diversos contextos mas, exceto nesse sentido, sou incapaz de compreendê-la. Descobrir o que é inquebrável em meio a tudo o que foi quebrado. Descobrir que a união pode ser tão irredutível quanto a solidão. Descobrir que os dois precisam compartilhar, não só o que não conhecem um do outro, mas também o que não conhecem de si mesmos.
Compartilhar o que conhecemos é, em comparação, um exercício insignificante.
Terei eu dito que havia apenas uma multidão de Jans, Brendans e Michaels acampados na caverna iluminada pela fogueira que tem a aparência de um velho e barato duplex com caixilhos de madeira ao sul do Boulevard Santa Mônica em Los Angeles? A vida nem sequer é assim tão simples! O que dizer do populacho enfurecido a quem, por polidez, denominamos "o passado"? Não há nada de abstrato com "o passado". Aquilo que marcou você ainda está marcando você. Existe um lugar em nós onde as feridas nunca cicatrizam e onde os amores nunca terminam. Ninguém sabe muito sobre esse lugar exceto que ele existe, alimentando nossos sonhos e fortalecendo e/ou assombrando os nossos dias. No casamento, ele existe com mais força que de hábito.
Ensangüentada, açoitada, semimorta, nua e torturada, minha mãe pende de um gancho no meu armário... pois pende de um gancho dentro de mim. Às vezes preciso tirá-la para fora e executamos a dança da dilaceração, arrancando nacos um do outro e, cheios de felicidade, espalhamos salpicos por todo lado — por cima de Jan, várias das muitas Jans, e vários dos muitos Brendans, e fujam para as montanhas, meus queridos, porque estou no meu horror.
Um dos meus muitos, meus insistentes horrores.
Cada um de nós, todos nós, estamos cheios de horror. Se você se casa para tentar espantar os seus, só vai se sair bem se fizer seu horror casar com o horror do outro, os dois horrores de vocês dois se casarão, você sangrará e chamará isso de amor.
Meu armário está cheio de ganchos, cheio de horrores, e eu também os amo, amo os meus horrores e sei que eles me amam, e por minha causa lá ficarão pendurados para sempre, porque eles também são bons para mim, eles também estão do meu lado, eles me deram muito para serem meus horrores, eles me fizeram forte para sobreviver. Existe muita coisa no nosso novo léxico "iluminado" que sugere que podemos nos mudar para uma casa que não tenha esse tipo de armário. Você se muda para uma casa dessas e pensa que está tudo bem até que começa a ouvir um grito distante e a sentir um cheiro estranho e aos poucos percebe que o armário está ali; tudo bem, mas ele foi emparedado e quando precisa desesperadamente abri-lo você encontra tijolos em vez da porta.
Na nossa caverna na encosta da montanha, neste apartamento, existe um armário onde os meus ganchos pendem ao lado dos de Jan e dos de Brendan — é espantoso quantos ganchos um menino de apenas onze anos consegue acumular —, que também estão ali por boas e dolorosas razões deles mesmos.
Para que o casamento seja um casamento, esses encontros não acontecem por compulsão ou por acidente; eles acontecem por intenção. Não quero dizer que todos os encontros com todos os vários eus e fantasmas sejam planejados (isso não é possível, embora às vezes possam ser evocados conscientemente); o que quero dizer é que esse nível de atividade é reconhecido como parte da busca, parte da responsabilidade que cada pessoa tem por si mesma e pelo outro.
E essa é a grande diferença entre as expectativas de um casamento e as de um relacionamento. Minha experiência de um relacionamento é duas pessoas compulsivamente trocando cadeiradas ao som de uma seleção musical dos arquétipos interiores uma da outra. Meu gângster durão tem um caso com a tua gata de inferninho. Sou o teu menor abandonado, és a minha mãe amorosa. Sou o pai que perdeste, és a minha filha amada. Sou o teu adorador, és a minha deusa. Sou o teu deus, és a minha sacerdotisa. Sou o teu paciente, és a minha analista. Sou a tua intensidade, és o meu solo. Esses são alguns dos padrões mais extravagantes. Animus e anima no sobe-e-desce da gangorra.
Esses padrões mantêm-se razoavelmente bem enquanto os pares arquetípicos se sustentam. Mas uma noite o garotinho dentro dele procura a mamãe dentro dela e em vez disso encontra uma analista de língua afiada que disseca suas entranhas. A menina dentro dela procura o papai dentro dele mas encontra um adorador pagão que quer fazer amor com uma deusa, e isso faz dela uma menina fingindo que é uma deusa para agradar o papai que não passa de um idolatra libidinoso mas... nesse jogo, menina não entra. A mulher se sente atraída pelo machão mas ele, secretamente, procura pela mãe — quando o eu sexual do homem está a serviço de um garotinho interior, não é de surpreender que ele não consiga ou que termine muito depressa. Ou então ele não está realmente ali, para ele é uma masturbação. Para esse homem com sua psique de garotinho, a mulher real é apenas uma substituta. E a mulher que está com ele na cama — uma extensão da sua masturbação — fica se perguntando (mesmo que a ação seja boa) por que não consegue sentir que está dormindo com alguém. E por que ele se afasta tão depressa quando acaba.
Por outro lado, o professor transa com a excitação do aluno, o analista transa com o abandono do paciente e o casal se vê, na cama, como deus e deusa a iluminar os céus — mas a psique é uma entidade múltipla e mutável, e nenhum desses pares compatíveis se mantém estável por muito tempo. Os desencontros arquetípicos logo começam e então é um desastre de confrontações que podem levar anos sem chegar a parte alguma (valeria a pena levar anos para chegar a algum lugar). As pessoas se cansam e desistem. E então o ciclo recomeça com outra pessoa.
Minha experiência de um casamento é que tudo isso está presente mas, instintiva ou conscientemente, o que temos nele são duas pessoas atropelando os arquétipos interiores uma da outra, desafiando-os, seduzindo-os, lisonjeando-os, emboscando-os, fazendo-os falar, abrindo-se a eles, fugindo deles, violando-os, apaixonando-se por alguns e odiando outros, conhecendo alguns, fazendo amizade com outros, pendurando alguns no gancho do armário do parceiro — cabides dos quais pendem pais, mães, irmãs, irmãos, outros amores, ídolos, fantasias, talvez até vidas passadas e a verdadeira consciência mitológica que às vezes emerge dentro de nós com tal força que sentimos o elo que remonta a milhares de anos e até mesmo a outros domínios do ser.
Isso é o que "desposamos" no outro, um processo que continua enquanto trabalhamos para ganhar a vida, vamos ao cinema, assistimos televisão, vamos ao médico, passeamos pelas Palisades, viajamos para o Texas, acompanhamos as eleições, tentamos parar de beber e nos empanturramos de Häagen-Dazs.

Quando ouvi a primeira história de amor comecei a
procurar por ti, sem saber
o quanto estava cega.
Os amantes não se encontram num lugar.
Eles existem,desde sempre, um no outro.
Rumi


Talvez todos os dragões desta vida
Sejam princesas à espera de
ver-nos, belos e bravos.
Talvez o horror seja apenas,
no mais fundo do seu ser, algo
que precisa do nosso amor.
Rainer Maria Rilke

2 de maio de 2013

Fidelidades perversas e traições leais

 

    Venho hoje refletir sobre uma situação da qual ninguém, ou ao menos aqueles que já a experimentaram, sente disposição para relembrar. Assunto delicado, tão assustador e pungente, tão presente e ao mesmo tempo negligenciado por nossa vida consciente. Relegado ao esquecimento, ao inconsciente e normalmente associado a vergonha, a vingança e a culpa; mas nunca ao crescimento e autoconhecimento.
   Motivada por algumas leituras (Bonder, Carotenuto, Hollis) e, de certa forma, pela lógica "nelsonrodriguiniana" de que devemos ver a vida "tal como ela é", sinto-me impelida a refletir sobre aqueles momentos em que fomos ou nos sentimos traídos, abandonados, trocados... e tantos outros verbos que compõem a cena dolorosa da traição.
    Claro que essa palavras podem assumir uma forma adjetiva (mulher rejeitada, homem traído, mulher abandonada), mas insistir que no drama da traição o melhor é concebe-las como verbos é ressaltar um ponto central, que faz toda a diferença: tanto "eu" quanto "ele" ou "ela" traímos, abandonamos e rejeitamos. Quer queiramos ou não reconhecer, somos todos sujeitos destas ações, ao menos em potencial. E estamos todos sujeitos a elas. Tendo sido eu ou não "o agente do verbo" trair, a realidade é que não há nesta vivência dolorosa '"sujeito agente ou paciente", "passivo ou ativo", vítima ou algoz. Ambos são, a um só tempo, agentes e vitimas de um desencontro que desembocou numa traição. Nesse sentido, Hollis afirma que:
"A pílula mais amarga na traição pode ser reconhecermos relutantemente, amiúde anos depois, que nós fizemos parte do balé conivente que com o tempo provocou a traição. Se conseguirmos engolir esta amarga pílula, teremos uma sensação bem mais ampla de controle da nossa sombra. Nem sempre iremos gostar do que seremos intimados a reconhecer. (...) Mas a partir dessa amarga erva, muita consciência evolui" (Hollis, em "Os pantanais da Alma", p.67). 
    Carotenuto, num livro com título um tanto provocador ("Amar, trair: quase uma apologia da traição"), defende o mesmo ponto de vista:
"A verdade é que a traição não pode ser atribuída a um só dos componentes do casal; em certo sentido, traído e traidor recitam um texto preciso, no qual, porém, cabe ao traidor a parte mais onerosa. Ele deve assumir a responsabilidade de preparar as bases para uma revisão e dissolução de uma relação que já perdeu toda razão de ser. Muitas vezes o traído já há muito pressentia o drama, mas sentia necessidade de negá-lo, porque investira tudo na outra pessoa" (Carotenuto, p. 132) 
     Falar da dor da traição é, portanto, falar da dor em reconhecer que o outro, aquele que me machuca, também é uma faceta minha e que com sua ação ele está comunicando algo sobre mim mesma, sobre ele e sobre a nossa relação.
   Identificar-se apenas com a vítima é o mesmo que solapar a possibilidade de ampliação da consciência e transformação. O traidor é, na verdade, o executor de algo que o traído, mesmo inconscientemente e diante de todas as suas repressões, também é capaz de fazer, mental ou concretamente. Somos todos hospedeiros de luz e sombra, das infinitas polaridades e possibilidades humanas, quer concretizemo-las ou não. O reconhecimento da nossa capacidade de também trair não nos habilita apenas ao perdão, mas sobretudo à libertação da dor e do ressentimento; condição necessária para que possamos seguir, com o mesmo parceiro ou numa nova relação.
    Na medida em que saímos da identificação rígida com apenas um dos polos (sou o traído, sou o traidor) abrimos a possibilidade de adentrar num território de possível crescimento pessoal e conjugal. Conseguir, diante de uma situação de traição, transitar entre os dois "lugares" é valorizar que, para além de vítima ou culpado, há, implícito à traição, algo muito mais importante, uma espécie de alerta: a infelicidade ou a insatisfação encontraram um jeito, talvez o pior, de se abrandarem. Insatisfação comigo mesmo (daí a necessidade, às vezes compulsiva, de uma terceira pessoa que me reafirme, que me regozije) ou com a relação.
    É sobre esta última motivação que pretendo me delongar. A primeira (insatisfação consigo próprio, insegurança, baixa autoestima e ect) conduziria a discussão sobre traições para outros rumos.
   Trair por descontentamento com a relação é o mesmo que fugir de um lugar onde estamos nos sentido "apertados", comprimidos.  É claro que esta não é a única ou melhor solução, pois um novo relacionamento, mas cedo ou mais tarde, desembocará novamente num "lugar apertado", onde dois corpos (leia-se subjetividades) mais uma vez se depararão com a real dificuldade de ocuparem um mesmo espaço... dois mundos espremidos!
   Nilton Bonder, em "A Alma Imoral", descreve quatro possíveis comportamentos que normalmente assumimos quanto estamos diante da necessidade de sair do "lugar estreito". Lugar que outrora serviu para nosso desenvolvimento e satisfação, mas que em um determinado momento (e por vários motivos) se tornou apertado e limitador:

  1º- Recuar: resolvemos, finalmente, sair do "lugar estreito", mas diante da força do hábito e do medo da mudança, preferimos recuar e ali permanecemos, mesmo que descontentes. A consequência: desacreditamos no novo e passamos a concebê-lo apenas com uma ilusão. É, em outras palavras, a conformidade com a realidade e com as limitações que ela impõe.
  2º- Lutar: é a crença de que se poderá fazer do  próprio lugar estreito um lugar mais amplo. A premissa é que jamais deve-se esquecer que o lugar estreito um dia não o foi.
 3º- Desesperar-se: é a crença na intransponibilidade do "lugar estreito" que gera desesperança no futuro. "Desse desespero surge a resignação de que, apesar de não se voltar ao lugar estreito, jamais se poderá atingir um novo lugar amplo" (Bonder, p.48).
  4º- Orar: é a crença de que a mudança pode acontecer sem uma nova definição de si, do outro e da relação. É a inútil esperança de que a realidade pode vir a se tornar mais compassiva sem a remodelação necessária.

    Apesar de Bonder ter concluído que nenhuma das quatro são alternativas válidas para uma verdadeira superação do "lugar estreito", acredito que o segundo comportamento (lutar) é uma possibilidade legitima de superação da problemática do estreitamento quando o "lugar estreito" em questão é um casamento. Bonder trabalhou com um conceito mais amplo de estreiteza, mencionou lugares estreitos que nem sempre são passiveis de "alargamento" pela luta. Mas quando o assunto é relacionamento, às vezes, "o comportamento de luta" pode, de fato, assumir uma forma positiva e altamente transformadora. Nesses casos, "lutar" para fazer do próprio lugar estreito um lugar mais amplo me parece o mesmo que  reconhecer que a traição (a fuga) não se configura como uma alternativa duradoura. Como dito anteriormente, nenhum lugar poderá ser amplo para sempre. O ponto de equilíbrio não é estático e é na aceitação e envolvimento consciente com a  força constante da tensão entre os opostos que o equilíbrio pode ser repetidamente reconquistado.
     Apesar da pertinente associação  da traição à fuga, essa é uma meia verdade, é apenas uma possibilidade associativa dentre várias outras. Se não tivermos medo de olhar as coisas pelo "lado escuro" ou avesso, é possível reconhecer que apesar da traição não ser uma solução, em alguns casos, ela pode se configurar como uma tentativa de renascimento, de revitalização. "Se o outro (...) é aceito somente enquanto corresponde à expectativa, é claro que, na vida de casal, cada um é delimitado em um papel, e não pode sair dele. A traição pode ser lida, portanto, não só como abandono do outro, mas também como tentativa irada de reconhecimento daquelas partes de si sufocadas na relação" (Carotenuto, p.135).
   Para não cairmos numa espécie de apologia à traição ou defesa aos traidores, é fundamental frisar que as motivações são diversas e distintas em cada caso particular. Atribuímos importância excessiva ao ato exterior e diminuímos a importância do estado interior; a manifestação exterior é secundária quando queremos considerar a raiz do problema (Palestra Pathwork nº 74 - Confusões duvidosas e motivações nebulosas). Então, para além da moral, do certo ou errado, bonito ou feio, o ponto central é discernir se a traição corresponde a um movimento/desejo de crescimento ou é apenas expressão de confusão destruidora, narcisista, vingativa e infantil. Cometê-la sem interrogar-se sobre a qual inquietação ela se refere é o mesmo que permanecer inconsciente dos limites (pessoais ou relacionais) que tem perturbado a possibilidade de se manter numa relação estável e duradoura. É ficar eternamente sujeito ao ciclo nada transformador de insatisfação-traição. Essas reflexões são importantíssimas quando há uma compulsão à trair, uma busca cega "sabe-se lá do que", um padrão repetitivo que nada tem a ver com a procura madura e consciente de auto realização. O donjuanismo e o coquetismo são, inegavelmente, desastrosos sintomas que precisam ser melhor compreendidos.  Como ressalta Bonder, esse tipo de infidelidade, esse "tipo de traidor" não age em função da necessidade de romper com uma situação externa disfuncional; mas sim, no sentido de perpetuar uma situação interna (psicológica) disfuncional. Suas ações são mais do que uma traição ao outro; eles traem, acima de tudo, a própria alma (psique), o próprio crescimento. Quando o Self nos "convida" à transgressão, ela inevitavelmente  se configura como um passo em direção à saúde, ao crescimento, à expansão. Quando o convite é feito pelo ego, ou por partes sombrias de nossa psique, a transgressão é apenas um ato de manutenção de patologias.  
    Em meio às reflexões sobre infidelidade é necessário também falar do seu oposto: a fidelidade. Retomo Bonder: a infidelidade é tanto o rompimento de compromissos quanto a manutenção dos mesmo de forma destrutiva, pois há fidelidades perversas e traições de grande lealdade. Há de se considerar que "...é possível que uma pessoa não cometa jamais uma ato de infidelidade, mas as motivações de sua 'fidelidade' podem ser tão doentias e imaturas quanto as motivações que levariam a pessoa a ser infiel externamente. A fidelidade exterior pode não ser fidelidade verdadeira. Portanto, o ato exterior fora de contexto e por si mesmo não pode ser adequadamente avaliado" (Palestra Pathwork nº 74 - Confusões duvidosas e motivações nebulosas) 
    Assim sendo, o que é ser fiel? É necessário ser fiel! É isso que aprendemos, é isso que desejamos quando entramos num relacionamento e é o que prometemos. Mas é necessário ser fiel ao quê? Ao outro? Acredito, assim como Bonder, Hollis, Carotenuto e tantos outros, que se deve, acima de tudo, ser fiel ao crescimento psicológico pessoal. E para isso preciso, necessariamente, trair ao outro? Na verdade não é ao outro que devemos trair, mas sim ao padrão de relacionamento, à zona de conforto. À suposta zona de conforto, aquele "lugar apertado" demais para os anseios do Self, mas vivido pelo ego como confortável, seja por medo da mudança ou pelo apego aos "ganhos secundários" de se permanecer numa relação, ainda que medíocre. Quem realmente devemos trair é o hábito, o medo, a rotina, a estreiteza, os pactos disfuncionais inconscientemente estabelecidos entre os cônjuges...
    Aparentemente é muito mais fácil tentar resgatar fora aquelas coisas que foram perdidas (ou vetadas) dentro de uma relação intima. Bonder bem ilustra essa dificuldade de fazer coincidir crescimento pessoal e crescimento conjugal:
"Observemos um casal que vive uma relação de casamento. O desequilíbrio maior surge quando um dos dois dá um passo à frente em direção à sua vida. Esse passo, que é muito transgressivo em relação à sua situação acomodada, deveria gerar um passo também no cônjuge  Se isso acontecesse, ambos estariam equilibrados e sua dinâmica seria natural. No entanto, o que mais acontece como reação a um passo à frente é que o outro dá um passo para trás. O desequilíbrio então se estabelece e uma situação não-dinâmica atravanca o processo vital. A maioria dos casamentos termina pela ocorrência desse ato reflexo. Quando um cônjuge esboça transformações em sua pessoa, implicando em transformações na relação, o outro muitas vezes cobra justamente os compromissos assumidos, dando um passo para trás. Não reconhece que seus direitos de apego não têm o menor valor numa relação em que o compromisso explícito é o relacionamento. Se, numa relação, alguém se modifica, o pacto é este: todos devem se colocar em movimento. A reação de dar um passo para trás - expondo carências, coletando justificativas ou evocando direitos - é um apego que, em si, é a maior das traições ao sonho assumido em pacto" (Bonber, p.31).
   São os curtos caminhos longos, nos quais a obediência acaba por significar desrespeito e a desobediência respeito (Bonder). A porta de saída dessa situação perversa me parece ser o diálogo, a forma mais transgressiva de lutar pela manutenção do que vale a pena é o casamento entre uma expressão sincera e um ouvinte corajoso e aberto. Mas a base para qualquer comunicação verdadeira e profunda é a auto observação e o auto conhecimento. Se dançávamos valsa e agora sei que o que me apetece é dançar tango, nada mais natural do que avisar ao parceiro e perguntar se ele topa experimentar esse novo ritmo. Do contrário, o velho misoneísmo (aversão a mudanças e hostilidade para com o novo) ganha a cena e o descompasso se instaura, as pisadas no pé se tornam quase que inevitáveis e a dança perde toda a sua beleza e sentido. Se conheço apenas superficialmente minhas motivações, vontades e necessidades como posso expressá-las a contento?  É a consciência do locutor/emissor que funciona como esteio para que a revelação autêntica possa florescer. É a consciência do interlocutor/receptor que permitirá, tal como um solo fértil, receber o florescimento de uma verdade alheia. E nessa arte de restaurar a dinâmica vital temos que correr riscos e transgredir algumas convenções, acreditar que "há um olhar que sabe discernir o certo do errado e o errado do certo. Este olhar é o da  alma" (Bonder).