Este é um espaço para a reflexão de temas que em algum momento e por alguma razão (do meu contexto pessoal ou da minha prática clinica) se tornaram, usando uma expressão gestáltica, importantes FIGURAS no imenso FUNDO existencial.

24 de maio de 2015

Palavra presa é tumor, palavra líquida é VIDA



Sinto que a filósofa capixaba Viviane Mosé expressou, em forma de poema, o que Lowen desenvolveu em seu livro Alegria: a entrega ao corpo e à vida.

Concordo com Mosé: as pessoas adoecem por "gostarem" de palavra presa. Muitas de nossas doenças nascem da nossa obsessão pelo controle. Nascem do nosso "gosto" em seguir acreditando (ou tentando fingir para os outros) que somos invulneráveis, inatingíveis, inabaláveis. Nascem da crença de que somos (ou temos que ser) bonzinhos demais e que não podemos soltar "aquela" palavra que está na ponta da língua. Nascem da crença de que mesmo não soltando-a, ainda assim, somos muito maldosos, pois no íntimo sabemos que ela continua ali, talvez não mais na ponta da língua, porém engasgada na garganta ou alojada de forma indigesta no estômago.

Invulnerabilidade, indiferença e bondade absoluta são irrealidades que a palavra presa tenta tornar reais. E é claro que o projeto está fadado ao fracasso. Palavra presa gera adoecimento (físico ou emocional) e se há alguma sensação de segurança na não expressão dos sentimentos, ela é ilusória.

Adoecemos por "gostar" de acreditar que ao nos desligarmos de nossos corpos e das nossas emoções estaremos protegidos. Ledo engano! Cultivar palavra presa é cultivar a ilusão da supremacia do ego sobre o corpo e as emoções.

Toda palavra presa limita a motilidade do nosso corpo, que se tenciona cronicamente com a energia presa dos sentimentos reprimidos. Habitar uma casa/corpo entulhada de emoções reprimidas é viver com muito pouco espaço para a alegria. Reduzimos nossa liberdade, nossa auto expressão, nossa vitalidade e a qualidade do nosso ser e estar no mundo e nas relações.

As emoções são correntes de energia que se movem pelo corpo, são movimentos ou impulsos dentro do corpo que geralmente resultam em alguma ação. Um ato, uma expressão, uma palavra... E palavra boa é palavra líquida, escorrendo, fluindo.

Esse estado de fluidez, liberdade e espontaneidade é uma condição natural que perdemos ao longo do tempo, um estado que  experienciamos na tenra infância, quando inocentes e livres não tínhamos inibições ou culpas pelos nossos sentimentos. Éramos, consequentemente, mais receptivos ao sentimento da alegria. E como pontua Lowen, alegria significa nada mais e nada menos do que estar com o coração aberto para as emoções, prazerosas ou dolorosas, permitindo que fluam e se expressem livremente. Só na abertura conseguimos recuperar a alegria que foi maculada pelas circunstâncias que nos frustraram e trouxeram dor ou tristeza. Lutar contra elas é em vão, nenhum sentimento deixa de existir ou de atuar pela repressão. Luta e alegria são incompatíveis. Uma criança pequena é capaz de se incendiar de raiva num minuto e no minuto seguinte transbordar de felicidade. Ela não se prende a dor: sente, expressa e deixa ir.

Essa autenticidade, porém, logo é cerceada, reprimida, punida e "rotulada" pelos pais e educadores como sendo muito perigosa: "Que menina feia você é, ninguém vai gostar de você assim!"

Controlar  a expressão de nossas emoções mais fortes torna-se, então, sinônimo de pertencimento. Afinal, qual criança suporta a rejeição ou a ameaça da retirada do amor pelos pais? Queremos todos ser "bons meninos", queremos ser amados e precisamos dessa confirmação/aceitação para sobreviver, ao menos na infância. Diante do medo da rejeição, a "solução" que a criança encontra é passar a sentir culpa e vergonha dos seus impulsos naturais. Em nome da sobrevivência, optamos pela repressão dos nossos sentimentos.
"Eliminamos os sentimentos tencionando o corpo e restringindo nossa respiração, mas ao fazer isso eliminamos também a possibilidade de alegria. (...) embalsamamos o passado em nossos corpos, o passado continua vivo na tensão. Aliviar a tensão permite-nos dar um passo para nos livrarmos do passado. Mas a tensão só pode ser aliviada se a pessoa expressa o sentimento que está contido na tensão" (Lowen, Alegria, p.59)
A tensão nos maxilares, por exemplo, pode estar relacionada com a repressão dos impulsos de chorar ou morder. As tensões nos músculos do ombro podem denotar o quanto a expressão da raiva está bloqueada. A tensão que circunda  a cabeça na base do crânio e que se propaga pela articulação temporomandibular é a principal resistência à entrega, é o principal mecanismo por meio do qual a pessoa se agarra ao controle. Independente de onde a tensão está localizada, sua principal função é bloquear a expressão. Enrijecemos o corpo para bloquear os impulsos ameaçadores que não ousamos expressar e, assim, imobilizamos e perdemos o contato com certas áreas do nosso corpo e também da nossa psique, pois corpo e mente são uma unidade.

"A tensão crônica é o equivalente físico do medo" (Lowen, Alegria, p. 41).  E o medo da punição e da rejeição talvez seja o responsável majoritário pelo nosso "gostar" de palavra presa. Vivemos num conflito entre expressar o que sentimos e o medo de fazê-lo. Temos medo da expressão, temos medo da retaliação, mas o nosso maior medo é o dos nossos próprios sentimentos, que com o processo de "educação" passaram a ser vistos como ameaçadores e perigosos. 
Tensão é prisão. Prisão é pessoa endurecida, sobrecarregada por palavras presas, por sentimentos calcificados. A vida é um processo fluido que se torna parcialmente congelado em estados de rigidez, que são estados de tensão. Em alguns casos, o choro funcionará como um degelo, em outros, o estado congelado só poderá ser transformado pelo calor - o calor da raiva.
Como entoa Mosé: dor endurecida é tumor, raiva endurecida é tumor, alegria endurecida é tumor, pessoa endurecida é tumor. Palavra boa é palavra liquida escorrendo em estado de lágrima. Lágrima é dor derretida, lagrima é raiva derretida, lagrima é alegria derretida, lágrima é pessoa derretida.
O choro é uma emoção que alivia. Chorar não muda o mundo lá fora, mas muda o mundo aqui dentro, apazigua a tensão e a dor.
"(...) O choro é como a chuva do céu que fecunda a terra (...) e certamente precisamos de uma chuva leve regularmente para manter nosso planeta verde e nossas almas lavadas" (Lowen, Alegria, p. 58).
A raiva é uma emoção restauradora e protetora, "é uma força da vida positiva que tem fortes propriedades curativas" (Lowen, Alegria, p. 91). Ela nos protege das ameaças externas e assegura e restabelece nossa integridade. É uma reação natural em situações que ferem ou ameaçam nossa integridade ou liberdade e, assim sendo, a capacidade de senti-la e expressa-la adequadamente é sinal de saúde.
Sentir e expressar adequadamente! Seja qual for o sentimento, esse é o caminho para amolecermos os poemas endurecidos do corpo e resgatarmos nossa alegria. Alegria enquanto entrega ao corpo e à vida.
"A alegria pertence ao reino das sensações corporais positivas: não é uma atitude mental. Não se pode decidir ser alegre. As sensações corporais positivas começam partindo de uma linha de origem que pode ser descrita como 'boa'. O seu oposto é sentir-se 'mal', o que significa que, em vez de uma excitação positiva, há uma excitação negativa de medo, desespero ou culpa. Se o medo ou desespero for muito grande, a pessoa reprimirá todo sentimento, caso em que o corpo se torna insensível ou sem vida. Quando os sentimentos são reprimidos, a pessoa perde a capacidade de sentir, que é a depressão, um estado que infelizmente pode torna-se um modo de vida. Por outro lado, quando a excitação prazerosa aumenta, a partir da linha de origem da sensação boa, a pessoa conhece a alegria. Se a alegria transborda, torna-se êxtase. Quando a vida do corpo é forte e vibrante, o sentimento, assim como o tempo, é variável. Podemos estar sentindo raiva num momento, depois afeto, e chorar a seguir. Assim como o sol pode aparecer depois da chuva, a tristeza pode transformar-se em prazer. Essa mudança de humor, assim como uma mudança no tempo, não compromete o equilíbrio básico da pessoa. As mudanças acontecem na superfície e não perturbam as pulsações profundas que proporcionam uma sensação de bem-estar à pessoa. A repressão do sentimento é um processo de insensibilização que diminui a pulsação interna do corpo, sua vitalidade, seu estado de excitação. Por esse motivo, reprimir um sentimento é reprimir todos os outros. Se reprimimos nosso medo, reprimimos nossa raiva. A repressão da raiva resulta na repressão do amor (Lowen, Alegria, p.20).
Me lembrei daquela expressão "mas vale um pássaro na mão do que dois voando". É claro que este provérbio é polissêmico, como todos os outros, e talvez ele nunca tenha sido evocado com a acepção que me ocorreu agora. Mas aproveitando o ensejo de não cultivar palavra presa, expresso o que senti ao me recordar dele:
Se, nesse momento, o que está "em suas mãos" é a tristeza, é mais seguro ficar com ela. Sentir, expressar e dar passagem...  É falsa a sensação de segurança que advém da luta pelo controle dos sentimentos. É preferível encarar o sentimento real que está nos habitando aqui e agora do que lutar para negá-lo. Diante do esforço para reprimir a tristeza  podemos nos enrijecer ao ponto de prejudicarmos a nossa a capacidade para sentir também a alegria. Fugindo de um, podemos perder os dois! Mas vale ficar com a tristeza, do que perder a capacidade de sentir... tanto a tristeza quanto a alegria!
Essa perspectiva pode parecer absurda num primeiro momento, mas no texto Abordagem junguiana do sofrimento- parte 1 elaborei um pouco mais sobre a importância de atravessarmos nossos "pântanos escuros", lançando mão da coragem e do fôlego que obtemos quando abandonamos a ilusão de que a vida é, ou deveria ser, composta apenas por "campinas ensolaradas". A verdade é que        
"Assim como o dia não existe sem a noite, nem a vida sem a morte, a alegria não pode existir sem a tristeza. Há dor na vida, assim como prazer, mas podemos aceitar a dor desde que não estejamos presos a ela" (Lowen, Alegria, p.19).
Todos nós fomos, em alguma medida, profundamente feridos na infância. Carregamos dor em nossos corpos e temos medo de cair, ao encararmos nossas antigas feridas, em desespero mortal. Mas se nos fechamos para a dor, inevitavelmente acabamos nos fechando também para o prazer. Não dá para ficar só com um dos lados da moeda. A vida é um ciclo, uma alternância de opostos. Podemos aceitar a noite na medida em que sabemos que o dia uma hora nascerá.
Todos os sentimentos são legítimos. Eles são a vida do corpo e condenar qualquer sentimento é condenar a vida. Podemos, em nome da harmonia social e do bem-estar coletivo, valorar atos e comportamentos como "certos" ou "errados", mas nunca um sentimento. Por isso, tal como Mosé, eu também tenho apreciado o pensamento chão, os poemas que nascem do pé, os sentimentos expressos com o pé no chão.
Estar com os pés no chão é estar em contato com nossa realidade externa e interna, com a realidade do corpo, dos sentimentos e emoções. É estar enraizado, presente no aqui e agora. É  respirar livremente, fazer contato com os olhos e expressar através da voz e dos movimentos o que pulsa em nosso coração.
O senso de segurança, o eixo e o centramento necessários para  que consigamos estabelecer relacionamentos saudáveis dependem de uma percepção realista do mundo externo e de nós mesmos. Lowen associa o estar com o pés no chão  (grounding) com a capacidade de sustentar nosso espaço,  nossas ideias, opiniões e pontos de vista. Estar sobre os próprios pés significa sentir-se independente e livre.

Liberdade é o oposto de controle e tensão, porém não é o oposto de autodomínio. Autodomínio não é sinônimo de controle, não é sinônimo de palavra presa. Autodomínio significa que o indivíduo está em contato consigo mesmo, sabe o que sente, não tem culpa ou vergonha pelo que sente e é capaz de expressar-se de modo apropriado para promover seus maiores interesses. Está no comando de si mesmo, no sentido de que está livre dos controles inconscientes decorrentes do medo de ser ele mesmo; livre das tensões musculares que bloqueiam a auto expressão e limitam sua auto percepção consciente; está em sintonia com a auto aceitação e com a liberdade de ser (Lowen, Alegria).  

3 de janeiro de 2015

2015

O clima coletivo de final/início de ano é sempre de planos, expectativas e promessas. Li uma mensagem, dentre as várias que circulam nesse período, que me fez refletir sobre o nosso hábito de desejar, para nós mesmos e para nossos queridos, um "Feliz Ano Novo". 

É claro que o desejo de que o ano seja bom e feliz é totalmente compreensível, mas a verdade, como bem escreveu Maurício Neubern (um excelente professor que meu deu aulas na graduação), é que o ano em si não nos trará nada de novo ou de bom.

2015 não lhe fará mais feliz.
2015 não lhe trará mais amigos, nem preservará os que você tem.
2015 não lhe trará mais amor.
2015 não lhe fará perdoar pessoa alguma.
2015 não lhe trará saúde.
2015 não lhe poupará os sofrimentos.
2015 não lhe abrirá caminhos novos.
2015 não lhe fará mais fiel aos compromissos maiores.
2015 não lhe fará mais próspero, nem com mais sucesso.
2015 não transformará sua vida.
2015 não lhe ensinará coisa alguma.
Mas, se você tiver a coragem de aceitar a si mesmo, de cumprir com o que seu coração fala, mesmo que indo contra o mundo inteiro; se você topar os desafios para os quais você nasceu e tiver a fé para se deixar conduzir pelas forças maiores; se você aceitar se tornar o ser humano um dia projetado na mente de Deus,
Então
2015 lhe trará grandes amigos e renovará os que já entraram em sua vida.
2015 lhe fará uma pessoa mais amorosa.
2015 lhe ensinará a ver o mundo com fé.
2015 lhe dará disposição e sentido para trabalhar.
2015 lhe trará saúde do corpo e da alma.
2015 lhe ensinará a fazer melhores opções.
2015 transformará suas dores em ensinamentos.
2015 lhe abrirá as portas do perdão.
2015 lhe conduzirá para ser ético e bom, independente das circunstâncias.
2015 lhe fará mais próspero em vários sentidos.
2015 lhe ensinará a colocar o sopro de sua alma em cada ação que fizer e a viver cada segundo, aqui, presente. E encontrar sentido na vida.
2015 será seu mestre em leveza e alegria.

(Maurício Neubern, num post do facebook)

Essas palavras me conduziram para um novo ponto de vista: o mais sensato e realmente fecundo não é desejar ou esperar que o "cenário" seja feliz, mas sim que o "protagonista" possa ser feliz em sua capacidade de dar vida e sentido ao seu cenário, tal como ele se apresenta aqui e agora. A expectativa de que o ano seja bom, em certo sentido, é ilusória. Precisamos abrir mão da ilusão e assumir plena responsabilidade pelo ano que se inicia. Nosso clássico voto "Feliz 2015 para você" deveria, como sugeriu Maurício, ser substituído por "Feliz você em 2015". Dentro da lógica da causa e efeito, poderíamos até dizer que somos a causa e 2015 o efeito!
"(...) a criança dentro de vocês deseja que tudo seja da forma que ela quer, do jeito que ela quer e na hora em que ela quer. Mas vai além disso. Isso implica também ter total liberdade sem responsabilidade. Vocês podem não ter consciência de que desejam exatamente isso. Mas tenho certeza de que, ao examinarem algumas de suas reações e se perguntarem o que elas realmente significam, quando chegarem à raiz delas, sem dúvida descobrirão que essa parte de vocês quer exatamente isso. Vocês querem, acima de vocês, uma autoridade benevolente que conduza suas vidas de todas as formas do jeito que vocês desejam. Vocês querem total liberdade com relação a tudo, vocês querem tomar decisões e fazer escolhas livremente. Se elas forem acertadas, o crédito é de vocês. No entanto, vocês não querem ser responsáveis por nada de ruim que aconteça. Então, vocês se recusam a ver a ligação entre um acontecimento e suas próprias ações e atitudes. Vocês encobertam tão bem essas relações de causa e efeito que, depois de um certo tempo, é preciso realmente um grande esforço para trazê-las à tona (Palestra do Guia Pathwork nº 60 / O abismo da ilusão - utopia - liberdade e auto responsabilidade).

Seja lá como for este ano que se inicia, no cotidiano percurso da individuação, e dentro da perspectiva da auto-responsabilidade, quem deve ser feliz, leve ou próspero somos nós, os senhores de nossas vidas e destinos, os únicos verdadeiramente responsáveis pelo nosso céu e inferno. Que possamos, então, estar de braços e corações abertos para tudo o que vier em 2015, cultivando a certeza de que tudo o que vem, chega na medida certa, como mais um tijolinho que podemos utilizar para edificar nossa felicidade. Nas palavras de Rudolf Steiner:
"Temos que erradicar da alma todo medo e temor do que o futuro possa trazer ao homem. Temos que adquirir serenidade em todos os sentimentos e pensamentos a respeito do futuro. Temos que olhar para frente com absoluta equanimidade para com tudo o que possa vir. Temos que pensar somente que tudo o que vier, nos será dado por uma direção universal plena de sabedoria. Isto é parte do que temos que aprender nesta era: viver com plena confiança sem qualquer segurança na existência. Confiança na ajuda sempre presente do mundo espiritual. Em verdade, nada terá valor se a coragem nos faltar. Disciplinemos nossa vontade e busquemos o despertar interior, todas as manhã e todas as noites".
Essa ideia de que devemos diária e corajosamente abraçar os desafios para os quais nascemos e seguir o caminho do coração com auto-responsabilidade e confiança na guiança maior (que não é benevolente nem malevolente, ela simplesmente é, e muitas vezes "escreve certo por linhas tortas") me fez lembrar da  parábola "A cruz e a ponte" e da música "O Alfaiate Supremo". Ambas são, ao meu ver, fontes de inspiração para NOSSA missão de, independe das circunstâncias, afirmar a vida e firmar em nossa existência "o ser humano um dia projetado na mente de Deus". Falam sobre a arte de transformar "bolas de canhão em lindas e lúdicas bolhas de sabão", "nossas penas da vida em maravilhosas penas de pavão" e, assim, irmos, aos poucos, limpando nossa visão para ver que nossa cruz é, na verdade, uma ponte feita sob medida para atravessarmos o abismo que nos separa de quem realmente somos e do que realmente viemos fazer nesta escola/vida (em 2015, 16, 17... até o derradeiro fim dos anos).

 A CRUZ E A PONTE

Certa vez um homem foi visitado por um anjo que lhe disse: 
- Eu vim trazer a sua cruz para que você possa carregá-la na sua jornada. 
Ele pegou a cruz e seguiu a jornada da vida. Depois de muito caminhar, encontrou um homem extremamente persuasivo que lhe perguntou: 
- O que você está fazendo com esta cruz aí? Está maluco? Ela deve ser muito pesada.
 E ele respondeu: 
- Não estou maluco não, cada um deve carregar a sua cruz. Mas ela realmente é pesada.
- Então por que você não corta um pedaço do pé da cruz? Vai ficar mais leve.
- Eu não posso fazer isso, é a minha cruz, eu tenho que carregá-la.
- Que besteira. Corta só um pedacinho, ninguém vai saber. Assim vai ficar mais leve para você carregar.
E o homem o convenceu de cortar um pedaço.
- Viu, não ficou mais leve?
- É, você tinha razão, só um pouco não vai fazer mal.
E ele continuou seguindo a sua jornada. Lá na frente, eis que ele encontra novamente aquele homem:
- Você continua carregando isso aí? Achei que tivesse desistido.
- Sim, eu continuo carregando a minha cruz.
- Mas ela deve estar muito pesada. Por que você não corta mais um pouco? Vai ficar mais leve.
- É, pode ser, não doeu nada da outra vez.
- Vamos cortar. Só que dessa vez vamos cortar um pouco mais pra ela ficar bem mais leve.
Ele concordou em cortar e depois seguiu sua jornada, carregando agora uma minúscula cruz. Muito tempo depois ele avista a cidade maravilhosa, cheia de ouro, pedras preciosas, prata. Era a visão mais maravilhosa que ele já teve em toda a sua vida. Era tão iluminada e brilhava tanto que não precisava do sol. Quando sem esperar ele se depara com um abismo e tamanho era o desespero que ele começa a gritar: 
- Me ajudem, quero atravessar, socorro alguém, por favor, me ajude, quero entrar na cidade. 
Cansado de tanto gritar, ele vê do outro lado do abismo o anjo, aquele que lhe entregou a cruz. E o anjo pergunta:
- O que você está  fazendo aí do outro lado? Por que você ainda não atravessou?
- Como? Não vê o abismo que nos separa?
- Sim vejo, respondeu o anjo
- Então, como eu vou atravessar?
- Onde está a ponte que eu te entreguei?
- Ponte? Você me entregou uma cruz e ela está aqui comigo.
E o anjo disse:
- Então, coloque-a no meio do abismo, porque o tamanho dela é exato para que você possa atravessar.
O homem analisou a largura da vala, comparou-a com a sua cruz e olhou desolado para o anjo. Mas este apenas lhe disse:
- Cada um só pode atravessar pela própria cruz. É uma pena, mas você terá que voltar e juntar todos os pedaços serrados, reintegrá-los e trazer a cruz inteira.


"As coisas já são o que são e agora somos nós que precisamos ser sãos!"