Este é um espaço para a reflexão de temas que em algum momento e por alguma razão (do meu contexto pessoal ou da minha prática clinica) se tornaram, usando uma expressão gestáltica, importantes FIGURAS no imenso FUNDO existencial.

19 de setembro de 2013

LibertAÇÃO: os complexos afetivos e a força de nos reimaginarmos como maiores que o nosso passado

  

   No texto A justa medida de valorização do nosso passado, presente e futuro, procurei refletir, baseada nas ideias de Schopenhauer, sobre a importância de darmos a devida atenção e valor ao nosso presente que, como asseverou o filósofo alemão, é o único tempo real e certo. É no presente que vivemos (ou deveríamos viver!) e é nele que, apesar do passado ou das preocupações com o futuro, podemos constantemente nos reinventar. 
   Apesar da importância inalienável do presente, sinto que minhas reflexões foram "justas" com o presente, mas "injustas" (no sentido de insuficientes) com o passado. E como acredito que toda e qualquer supervalorização é irreal e até mesmo perigosa, retorno para refletir melhor sobre a importância do passado em nossas vidas.
   Partirei do básico: os fatos marcantes de nossa história pregressa guardam uma estreita relação com o nosso presente e, consequentemente, com o nosso futuro. Se os subestimamos, aumentamos nossa vulnerabilidade diante da força do passado e diante da força que nos impele à reeditar antigas feridas e protestos. Na tentativa de "ignorar" o passado doloroso, nos tornamos prisioneiros dele por meio da repetição inconsciente. Se supervalorizamos, nos tornamos igualmente prisioneiros, reféns da nossa história e impotentes diante do futuro. A força do passado anula a força de mudança intrínseca ao presente. No entanto, se nos posicionamos adequadamente diante de nosso passado, acessamos a possibilidade de romper com sua tirania. Percebemos, por um lado, que muitas de nossas dificuldades atuais foram geradas pela nossa história de vida e que não podemos fugir delas, pois nunca podemos fugir do nosso passado; mas, por outro lado, percebemos  que não somos meramente reféns: ao invés de fugir podemos reconhecer, encarar e trabalhar com nossas feridas em prol de uma visão de mundo menos condicionada ao que de terrível já pode ter nos acontecido. 
   A infância é um período crucial em nossas vidas e revisitá-la é uma excelente oportunidade de autoconhecimento. Muitas conclusões sobre o funcionamento da vida e dos relacionamentos foram "arquitetadas" na infância, momento no qual a sensibilidade e vulnerabilidade da criança são maiores que sua capacidade de processar "adequadamente" as experiências dolorosas. Essas conclusões infantis, tiradas sobretudo a partir de experiências traumáticas, são tão fortes e sólidas que continuam a atuar na psique adulta. 


 Inicialmente, pode ser bastante perturbadora a ideia de que muito do que pensamos, sentimos e fazemos hoje foi condicionado pela nossa história e está além do nosso controle consciente. Pensar que estamos sujeitos à interferência inconsciente de múltiplas forças internas é uma espécie de afronta a nossa tão cara noção de livre-arbítrio. No entanto, uma maior liberdade de ação e escolha só pode ser minimamente conquistada se reconhecermos que muitas de nossas dificuldades atuais têm raízes no passado. Rememorá-lo com o intuito de investigar as distorções e os padrões de comportamento historicamente construídos é uma atitude que pode liberar, total ou parcialmente, nossos relacionamentos das interferências inconscientes que nos conduzem irrefletidamente às mesmas reações elegidas na infância como "as mais adequadas". 
   A teoria dos complexos de Jung nos ajuda a entender como os eventos do passado, sobretudo os vividos na infância, se tornam fixados e operantes na psique adulta.  Mas o que é um complexo? 
   Para uma melhor compreensão sobre o que é e como age um complexo utilizarei o  exemplo clínico dado por Whitmont no livro "A Busca do Símbolo - Conceitos Básicos de Psicologia Analítica":   
 "Um rapaz veio à procura de ajuda por causa de dificuldades generalizadas em relação às pessoas, ou melhor, a qualquer pessoa que desafiasse sua necessidade compulsiva de dominar qualquer situação, especialmente, é claro, seus superiores no trabalho. Sua ânsia de liderar e de dominar os outros funcionava relativamente bem até que ele sentisse que sua liderança estava de algum modo sendo questionada. Ele interpretava até mesmo a tentativa de alguém para conhecê-lo melhor como uma ameaça à sua autoridade. Qualquer pessoa que tivesse uma aparência de autoridade sobre ele parecia imediatamente insultá-lo e, portanto, ele constantemente achava necessário mudar de emprego. Não havia sido capaz de terminar a faculdade porque era intolerante  com a disciplina exigida. Ele claramente tinha um problema com relação à autoridade e à disciplina e reagia violentamente a elas; no entanto, tinha potencial para tornar-se um excelente líder. Era muito sensível aos sentimentos e às necessidades dos outros - apesar de que, a esta altura, sua sensibilidade trabalhava contra ele, já que o tornava mais apto a retrair-se. A autoridade fascinava-o e repugnava-o ao mesmo tempo; ele não conseguia nem aceitá-la nem exercê-la de modo adequado. Em linguagem psicológica simples, este rapaz tinha um complexo de autoridade. Ele sempre estava preso à autoridade. O rapaz ia direto a ela, ele a combatia e a desafiava, mas sempre se sentia impelido a exercê-la. No entanto, era incapaz de enquadrar-se em qualquer situação comum na qual o exercício da autoridade fosse apropriado, e mais ainda de encarar um desafio real que o exigisse. Nesse tipo de situação é como se uma personalidade autoritária e dividida estivesse dirigindo e ridicularizando o indivíduo em questão, levando-o a encontra o problema da autoridade em toda parte, independentemente de se seu melhor juízo - ou seu 'pior' juízo - e o que é mais importante, ele não sabia que estava sendo dirigido. Qualquer coisa associada, mesmo que remotamente, com a autoridade, sobretudo com a autoridade paterna, punha essa força em movimento, e fazia-o de um modo bastante destrutivo porque, quer ele a encontrasse em outras pessoas, quer ele próprio a exercesse, era certo que problemas surgiriam. Ele hostilizava as pessoas ou era hostilizado por elas, e inevitavelmente punha a culpa nos outros. Parecia que sempre era a outra pessoa que não reconhecia o seu efeito benéfico, e era sempre a outra pessoa que o isolava ou queria derrubá-lo, ou o desafiava, ou o antagonizava" (Whitmont, p.52).
   Whitmont prossegue em suas considerações a cerca do caso demonstrando que o complexo de autoridade deste homem surgiu a partir de experiências dolorosas com seu pai, descrito por ele como uma pessoa cruel, autoritária, injusta e matreira. O pai e a autoridade paterna foram associados à quebra de confiança, à exploração, à crueldade e ao exercício de uma disciplina impiedosa. Então, "qualquer coisa que o fizesse lembrar da forma como havia vivenciado a autoridade lhe provocava terror, perseguia-o e ameaçava-o; naturalmente ele nunca poderia aceitar a disciplina ou a liderança, mesmo quando eram apropriadas" (Whitmont, p.60). Este homem possuía um grande ressentimento em relação à autoridade paterna e respondia a qualquer "situação associada" sempre com a mesma carga emocional do passado (ódio, retraimento, ataque).
   Voltemos, agora, a pergunta inicial: O que é um complexo?
"Imaginemos por um momento que a pisque é um objeto tridimensional como o sistema solar. A consciência do ego é a Terra, terra firme; é onde vivemos, pelo menos durante as nossas horas vígeis. O espaço ao redor da Terra está cheio de satélites e meteoritos, alguns grandes, outros pequenos. Esse espaço é o que Jung chamou o inconsciente, e os objetos com que primeiro nos deparamos quando nos aventuramos nesse espaço são o que ele chamou de complexos" (Stein, Jung: O Mapa da Alma, p.41).
   O inconsciente é povoado por complexos. Semelhantes aos satélites que orbitam um planeta, os complexos circulam em torno do ego. Tal como um meteorito que ao cair na Terra deixa sua marca inequívoca; o complexo, quando irrompe na consciência, tem um tremendo poder de influenciar o Eu e gerar grandes perturbações internas e relacionais. Assim como um meteorito é formado por fragmentos de asteroides, cometas ou restos de planetas desintegrados; o complexo é formado pela reunião de imagens, sentimentos e ideias em torno de um tema central. É como um vórtice que gira ao redor de um centro e atrai para si tudo o que lhe diz respeito. Se o tema central é, por exemplo, o pai; o complexo paterno será o resultado de todas as experiências positivas e negativas com o pai (pessoal e arquetípico). Esta rede de material associado (lembranças, fantasias, imagens, pensamentos) gravita em nosso inconsciente e pode, em determinadas situações, emergir e "tomar a cena". 


   Dizemos que um complexo está "constelado" (expressão comum no léxico junguiano) quando ele está cheio de energia e suas "ondas" são capazes de exercer influências sobre a consciência. O termo "constelação" refere-se, portanto, à criação de um momento psicologicamente carregado no qual a consciência fica perturbada; indica que uma situação exterior desencadeou um processo psíquico que consiste na aglutinação e na atualização de determinados conteúdos. Quando essa rede de associações emocionalmente carregadas a qual o complexo está ligado é ativada, o indivíduo passa a adotar uma atitude preparatória e de expectativa, com base na qual reagirá de forma inteiramente definida (Stein, Jung: O Mapa da Alma). Nossa visão da realidade sofre, portanto, uma considerável distorção e somos automaticamente conduzidos a dar respostas de intenso afeto. 
"Nunca poderemos conhecer o que realmente encontramos no exterior até que tenhamos alguma noção dos complexos que podem colorir nossa visão. Se usamos óculos vermelhos e olhamos para um semáforo, o vermelho que vemos pode estar lá, mas também pode estar apenas nos óculos" (Whitmont, p.57)
   Os complexos são, portanto, padrões peculiares de reação formados a partir da experiência pessoal de cada um com um determinado tema (mãe, pai, inferioridade, superioridade, poder etc). São formados por acontecimentos e traumas da infância, dificuldades e repressões; são resultados de condicionamentos, interações e padrões familiares. São como "personalidades autônomas" dentro da personalidade total; "sub-personalidades" que quando ativadas "desencadeiam uma imagem de quem somos, em que contexto e qual deve ser nossa reação relacionada" (Hollis, Os Pantanais da Alma, p.175). 
   Para descobrir se estamos reagindo a partir de um complexo, ou seja, respondendo à realidade a partir de um condicionamento passado, ou se estamos sendo autênticos diante das novas experiências (tal como elas nos são apresentadas no aqui agora) precisamos conhecer o nosso passado e os meandros de nosso inconsciente. É necessário descer às origens, voltar às cenas primordiais, conhecer os sentimentos dolorosos e negativos que nos conduziram às nossas habituais atitudes defensivas.
   No entanto, para reduzirmos o poder indesejado de um complexo, não basta apenas sabermos os "porquês" e "comos" do passado. Muitas vezes, apesar de já termos adquirido uma boa noção sobre nossas cadeias complexuais, ainda assim, continuamos sendo tragados por elas.  
"Trabalhar com um complexo não é diferente de tentar libertar um velho cavalo de moinho. Durante toda vida ele puxou a grande mó em volta do seu circuito de moagem. Nós o desamarramos, lemos em voz alta para ele sua carta de direitos, mas acordamos na manhã seguinte e vemos o velho cavalo percorrendo o mesmo circuito. (...) À semelhança do cavalo de moinho que é liberado de sua carga, podemos dar seguimento ao nosso mesmo melancólico circuito. A diferença entre nós e um cavalo de moinho é a nossa capacidade de imaginação. (...) Somos limitados por nossos complexos e fadados a repetir os padrões de reação históricos até a ocasião em que conseguimos expandir nossa visão do que é possível - de nos reimaginarmos" (Hollis, Os Pantanais da Alma, p. 173). 
    A capacidade de nos reimaginarmos como maiores que o nosso passado é o que nos diferencia de um cavalo de moinho. Enquanto para ele o passado tem um poder inquebrável - ele continua a repetir o seu circuito porque não consegue romper e escapar dos limites do seu condicionamento histórico; em nós, o passado tem o poder de nos determinar, mas não o de nos limitar em definitivo! Para irmos contra a sua ditadura, é necessário nos alinharmos ao potencial humano criativo, imaginativo, restaurativo... 
   E há que ser ter coragem e humildade, pois não é fácil duvidar dos óculos que usamos há tantos anos e que já estão confortáveis em nosso rosto, apesar de todo desconforto que sua lente constantemente nos impõe! Além do que, foram cuidadosamente "escolhidos" e fixados em nossos olhos por uma grande necessidade de autoproteção. No exemplo dado por Whitmont, aquele rapaz que tinha problemas generalizados com as pessoas e se sentia compelido a reagir sempre defensivamente por ver o problema da autoridade em toda parte, desejava, no fundo e acima de tudo, apenas se proteger da possibilidade de reviver seu drama infantil.
   Assim sendo, começar a questionar nossas verdades e a fidedignidade de nossas avaliações da realidade não é uma tarefa simples, pode gerar medo e uma profunda sensação de fragilidade e inadequação. Como afirma Bert Hellinger (Constelações Familiares - Conversas sobre emaranhamentos e soluções), "os donos da verdade" (que é como nos sentimos quando estamos sob o controle de um complexo) são demasiadamente obtusos e nos fazem lembrar, por exemplo, "as autoridades da igreja que disseram a Galileu que não precisavam olhar pelo telescópio porque já sabiam que não podia existir luas ao redor de Júpiter. Os donos da verdade não se preocupam em saber a verdade" (Hellinger, p. 98).
   Voltemos, agora, a Schopenhauer, quem me inspirou a escrever o primeiro texto sobre "passado, presente e futuro", e à sua ideia de que devemos acolher jovialmente o presente, sem desperdiçá-lo ou estragá-lo com desgostos do passado ou ansiedades em relação ao porvir. 
  A meu ver, essas assertivas de Schopenhauer se aproximam da terapêutica junguiana na medida em que, mesmo quando o ponto de partida da análise é o passado ou o futuro, o ponto de chegada é sempre o presente. Estamos, durante a análise, constantemente envolvidos nas possíveis respostas para as seguintes perguntas:
Para onde minha vida, tal como está sendo vivida hoje, está me conduzido? Para a reedição do passado ou para novas paragens?
A forma como vivo hoje me aproxima ou me afasta do que quero/desejo para o meu amanhã?
Em que medida, ou em que áreas, a forma como respondo à vida hoje está condicionada ao meu passado? Consigo dar novas respostas às situações já conhecidas? Consigo dar respostas adequadas às novas situações? Ou estou preso ao passado, dando sempre velhas respostas às novas  situações?
Qual o sentido, o significado de minhas experiências dolorosas? Qual é a tarefa/mudança que meu sofrimento implicitamente me impõe? Eu a assumo, ou prossigo revivendo (inconscientemente!) antigas feridas e antigos protestos no presente?
    A dor e sofrimento que acompanham a constelação de um complexo negativo são, acima de tudo, verdadeiros convites à mudança. Nossas experiências dolorosas são grandes oportunidade de crescimento e o aqui agora é único tempo possível para empreendermos as transformações necessárias. O presente é como o "meio do caminho", aquele ponto no qual podemos decidir voltar ou seguir; o ponto estratégico que nos fornece um excelente ângulo de visão: podemos olhar para um lado e outro, para o ontem e o amanhã e, assim, aumentar as possibilidades para que novos caminhos sejam trilhados. Essa "mudança de direção" depende, inteiramente, da nossa capacidade de "libertar a ação". Depende da decisão de tirarmos da radiola aquele velho disco riscado, que repete incessantemente o mesmo trecho da música...