Este é um espaço para a reflexão de temas que em algum momento e por alguma razão (do meu contexto pessoal ou da minha prática clinica) se tornaram, usando uma expressão gestáltica, importantes FIGURAS no imenso FUNDO existencial.

3 de maio de 2013

A dança da sombra no palco do casamento

Ventura, colunista de Los Angeles, num trecho de "A dança da sombra nos Estados Unidos", narra o encontro proporcionado pelo casamento com os seus "horrores" internos, que numa relação estável e duradoura puderam emergir do armário. O autor demonstra o quanto o matrimônio parece ser uma situação perfeita para que nossos "demônios" levantem suas cabeças e bravejem suas "verdades" e exigências.

O texto encontra-se no livro Ao encontro da sombra (Zweig e Abrams), no capítulo destinado às reflexões sobre os aspectos sombrios que emergem nos relacionamentos interpessoais. A idéia central é a de que "qualquer relacionamento íntimo pode servir como excelente veículo para o trabalho com a sombra, no qual o fogo do amor pode se alastrar pelos lugares imobilizados, iluminar os devãos escuros e nos apresentar a nos mesmos" (p.87).

Já postei um texto (O casamento como veículo para o trabalho com a sombra) deste mesmo livro e sobre o mesmo assunto. Quem tem interesse em se aprofundar no tema (ou em suas relações!) vale lê-lo também.

Ambos substanciam, de certa forma, a discussão levantada em Fidelidades perversas e traições leais, na qual reflito sobre o quanto algumas traições conjugais se configuram como uma tentativa de responder ao desígnio maior da alma (psique), que é se auto-realizar. Quando os padrões relacionais se mostram falidos, surge o convite da alma para a transgressão. Mas a grande questão é: devo trair o padrão ou trair o parceiro? Como muitos contratos matrimoniais (inconscientemente estabelecidos) não suportam modificações, trair o outro acaba por se tornar a única alternativa para não continuar traindo a si mesmo. Mas há de se considerar fortemente que não são todas as traições que se originam do desejo da alma por realização e crescimento, muitas são convites feitos pelo ego! Essa diferenciação é crucial para a legitimidade da proposta que apresento no post supracitado de que nem toda traição pode ser entendida apenas como um "desrespeito ao outro".


Acredito que os três textos (os dois do livro Ao encontro da sombra e o de minha autoria - Fidelidades perversas e traições leais) apontam possíveis respostas às perguntas:
"Por que tantos conflitos e desentendimentos conjugais?"
"Por que tantas separações?"
"Por que tantas desistências ou traições?"
 E principalmente, "Mudar de parceiro sempre que a crise se instala acreditando que com a pessoa 'y', 'x' ou 'z' vai ser diferente, é realmente a atitude que nos aproxima do tão idealizado 'viveram felizes para sempre'?".

A dança da sombra no palco do casamento

Michael Ventura

Jan e eu passamos direto da paquera para o casamento. Decidimos casar dez dias depois de nos termos conhecido. Isso nos poupou a tarefa de ficar não-conhecendo um ao outro, que em geral consiste naquela coisa triste que é um experimentando o seu "eu" no outro, testando de modo compulsivo e/ou intencional a capacidade de compromisso. Isso é necessário numa fase da vida mas, como muitos da nossa idade, já o tínhamos feito muitas vezes antes. Decidimos que dessa vez era sem teste. Iríamos dançar conforme a música. Casar conforme a música.
Casamos um com o outro ou casamos com o impulso? Boa pergunta. Uma pergunta que só pode ser respondida quando já é tarde demais. Melhor ainda. Pois o amor nada será se não houver fé. Nada.
Quando Brendan nasceu, quase nove anos antes de Jan e eu nos conhecermos, ela mandara imprimir nos cartões o refrão do velho blues:

Baby l learned to love you
Honey 'fore I called
Baby 'fore I called your name
(Baby, aprendi a te amar...antes de dizer...antes de dizer o teu nome”) 

        O amor geralmente acontece do jeito que diz essa velha canção. Como se amar fosse "dizer o seu nome". E, com certeza, "ser amado" é sentir que o nosso nome é dito com uma inflexão que nunca ouvimos antes.
E o nosso convite de casamento dizia assim:

Come on over
We ain't fakin'
Whole lotta shakin’ goin’ on
(Chega pra cá, não tamos brincando, tem muita coisa pra sacudir) 

        É esquisito, hoje, pensar como foi vaga a nossa premonição de usar esse verso de Jerry Lee Lewis — embora uma única vez tenhamos "chegado às vias de fato" (reveladora essa velha expressão, não é?, com esse estranho formalismo), e foi Jan quem começou, quebrou meus óculos, e então eu dei nela, uma vez só, e ela bateu contra a parede, nós dois nos sentindo tão sujos e feios e errados. Quantos avôs e avós, amargos e há muito idos, estavam na sala naquela hora, cacarejando de satisfação diante da nossa vergonha? Os dela, irlandeses; os meus, sicilianos. Duas tradições que não nos ensinaram a perdoar. Aprender a perdoar é romper com um passado imperdoável.
Pense na palavra: "perdoar"... "doar"... "dar". O perdão é um dom tão grande que o conceito de "dar" está contido na palavra "perdoar". A tradição cristã tentou tornar o perdão humilde e passivo: ofereça a outra face. Mas "dar" é um verbo ativo, que revela a verdadeira natureza do perdão: perdoar envolve o ato de tomar algo de si mesmo e dá-lo ao outro, para que de agora em diante lhe pertença, Não tem nada de passivo. É um intercâmbio. Um intercâmbio de fé: acreditar que aquilo que foi feito pode ser desfeito ou transcendido. Quando duas pessoas precisam fazer esse intercâmbio uma com a outra, esse pode ser um dos atos mais íntimos de suas vidas.
O perdão é uma promessa de trabalhar para desfazer, para transcender. O casamento muito cedo oferece aos envolvidos a oportunidade de perdoar. Houve muitas cadeiras quebradas, muitos pratos quebrados — até uma máquina de escrever quebrada, minha velha e amada Olympía manual portátil que estava comigo desde os tempos do colégio e que eu mesmo arrebentei — testemunhando quão desesperado pode ser o desespero conjunto de todos os Michaels, Jans e Brendans. Whole lotta shakin’ goin' on: tem muita coisa para sacudir... e, às vezes, quando você está tentando romper as crostas endurecidas dentro de si mesmo e dentro de cada um dos outros, alguns pratos e máquinas de escrever e móveis podem participar do processo.
O aspecto mais odioso dos "diga a si mesmo que está tudo bem" e "eu estou OK, você está OK" é a incapacidade deles de admitir que às vezes você precisa gritar, bater portas, quebrar móveis, avançar o farol vermelho e perder o controle só para poder começar a achar as palavras que descrevem essa coisa que está comendo você por dentro. Às vezes, a meditação e o diálogo simplesmente não conseguem removê-la. Às vezes ela precisa mesmo é de uma boa "cortada" — ou, pelo menos, a whole lotta shakin’, uma boa "sacudida geral". Quem tem medo de quebrar, por dentro ou por fora, está no casamento errado. Pôr tudo para fora. Escancarar as janelas. Depois da tempestade, vamos ver o que restou.
E isso é "o lenitivo que o casamento oferece" — ouvi essa expressão em diversos contextos mas, exceto nesse sentido, sou incapaz de compreendê-la. Descobrir o que é inquebrável em meio a tudo o que foi quebrado. Descobrir que a união pode ser tão irredutível quanto a solidão. Descobrir que os dois precisam compartilhar, não só o que não conhecem um do outro, mas também o que não conhecem de si mesmos.
Compartilhar o que conhecemos é, em comparação, um exercício insignificante.
Terei eu dito que havia apenas uma multidão de Jans, Brendans e Michaels acampados na caverna iluminada pela fogueira que tem a aparência de um velho e barato duplex com caixilhos de madeira ao sul do Boulevard Santa Mônica em Los Angeles? A vida nem sequer é assim tão simples! O que dizer do populacho enfurecido a quem, por polidez, denominamos "o passado"? Não há nada de abstrato com "o passado". Aquilo que marcou você ainda está marcando você. Existe um lugar em nós onde as feridas nunca cicatrizam e onde os amores nunca terminam. Ninguém sabe muito sobre esse lugar exceto que ele existe, alimentando nossos sonhos e fortalecendo e/ou assombrando os nossos dias. No casamento, ele existe com mais força que de hábito.
Ensangüentada, açoitada, semimorta, nua e torturada, minha mãe pende de um gancho no meu armário... pois pende de um gancho dentro de mim. Às vezes preciso tirá-la para fora e executamos a dança da dilaceração, arrancando nacos um do outro e, cheios de felicidade, espalhamos salpicos por todo lado — por cima de Jan, várias das muitas Jans, e vários dos muitos Brendans, e fujam para as montanhas, meus queridos, porque estou no meu horror.
Um dos meus muitos, meus insistentes horrores.
Cada um de nós, todos nós, estamos cheios de horror. Se você se casa para tentar espantar os seus, só vai se sair bem se fizer seu horror casar com o horror do outro, os dois horrores de vocês dois se casarão, você sangrará e chamará isso de amor.
Meu armário está cheio de ganchos, cheio de horrores, e eu também os amo, amo os meus horrores e sei que eles me amam, e por minha causa lá ficarão pendurados para sempre, porque eles também são bons para mim, eles também estão do meu lado, eles me deram muito para serem meus horrores, eles me fizeram forte para sobreviver. Existe muita coisa no nosso novo léxico "iluminado" que sugere que podemos nos mudar para uma casa que não tenha esse tipo de armário. Você se muda para uma casa dessas e pensa que está tudo bem até que começa a ouvir um grito distante e a sentir um cheiro estranho e aos poucos percebe que o armário está ali; tudo bem, mas ele foi emparedado e quando precisa desesperadamente abri-lo você encontra tijolos em vez da porta.
Na nossa caverna na encosta da montanha, neste apartamento, existe um armário onde os meus ganchos pendem ao lado dos de Jan e dos de Brendan — é espantoso quantos ganchos um menino de apenas onze anos consegue acumular —, que também estão ali por boas e dolorosas razões deles mesmos.
Para que o casamento seja um casamento, esses encontros não acontecem por compulsão ou por acidente; eles acontecem por intenção. Não quero dizer que todos os encontros com todos os vários eus e fantasmas sejam planejados (isso não é possível, embora às vezes possam ser evocados conscientemente); o que quero dizer é que esse nível de atividade é reconhecido como parte da busca, parte da responsabilidade que cada pessoa tem por si mesma e pelo outro.
E essa é a grande diferença entre as expectativas de um casamento e as de um relacionamento. Minha experiência de um relacionamento é duas pessoas compulsivamente trocando cadeiradas ao som de uma seleção musical dos arquétipos interiores uma da outra. Meu gângster durão tem um caso com a tua gata de inferninho. Sou o teu menor abandonado, és a minha mãe amorosa. Sou o pai que perdeste, és a minha filha amada. Sou o teu adorador, és a minha deusa. Sou o teu deus, és a minha sacerdotisa. Sou o teu paciente, és a minha analista. Sou a tua intensidade, és o meu solo. Esses são alguns dos padrões mais extravagantes. Animus e anima no sobe-e-desce da gangorra.
Esses padrões mantêm-se razoavelmente bem enquanto os pares arquetípicos se sustentam. Mas uma noite o garotinho dentro dele procura a mamãe dentro dela e em vez disso encontra uma analista de língua afiada que disseca suas entranhas. A menina dentro dela procura o papai dentro dele mas encontra um adorador pagão que quer fazer amor com uma deusa, e isso faz dela uma menina fingindo que é uma deusa para agradar o papai que não passa de um idolatra libidinoso mas... nesse jogo, menina não entra. A mulher se sente atraída pelo machão mas ele, secretamente, procura pela mãe — quando o eu sexual do homem está a serviço de um garotinho interior, não é de surpreender que ele não consiga ou que termine muito depressa. Ou então ele não está realmente ali, para ele é uma masturbação. Para esse homem com sua psique de garotinho, a mulher real é apenas uma substituta. E a mulher que está com ele na cama — uma extensão da sua masturbação — fica se perguntando (mesmo que a ação seja boa) por que não consegue sentir que está dormindo com alguém. E por que ele se afasta tão depressa quando acaba.
Por outro lado, o professor transa com a excitação do aluno, o analista transa com o abandono do paciente e o casal se vê, na cama, como deus e deusa a iluminar os céus — mas a psique é uma entidade múltipla e mutável, e nenhum desses pares compatíveis se mantém estável por muito tempo. Os desencontros arquetípicos logo começam e então é um desastre de confrontações que podem levar anos sem chegar a parte alguma (valeria a pena levar anos para chegar a algum lugar). As pessoas se cansam e desistem. E então o ciclo recomeça com outra pessoa.
Minha experiência de um casamento é que tudo isso está presente mas, instintiva ou conscientemente, o que temos nele são duas pessoas atropelando os arquétipos interiores uma da outra, desafiando-os, seduzindo-os, lisonjeando-os, emboscando-os, fazendo-os falar, abrindo-se a eles, fugindo deles, violando-os, apaixonando-se por alguns e odiando outros, conhecendo alguns, fazendo amizade com outros, pendurando alguns no gancho do armário do parceiro — cabides dos quais pendem pais, mães, irmãs, irmãos, outros amores, ídolos, fantasias, talvez até vidas passadas e a verdadeira consciência mitológica que às vezes emerge dentro de nós com tal força que sentimos o elo que remonta a milhares de anos e até mesmo a outros domínios do ser.
Isso é o que "desposamos" no outro, um processo que continua enquanto trabalhamos para ganhar a vida, vamos ao cinema, assistimos televisão, vamos ao médico, passeamos pelas Palisades, viajamos para o Texas, acompanhamos as eleições, tentamos parar de beber e nos empanturramos de Häagen-Dazs.

Quando ouvi a primeira história de amor comecei a
procurar por ti, sem saber
o quanto estava cega.
Os amantes não se encontram num lugar.
Eles existem,desde sempre, um no outro.
Rumi


Talvez todos os dragões desta vida
Sejam princesas à espera de
ver-nos, belos e bravos.
Talvez o horror seja apenas,
no mais fundo do seu ser, algo
que precisa do nosso amor.
Rainer Maria Rilke

Nenhum comentário: