Este é um espaço para a reflexão de temas que em algum momento e por alguma razão (do meu contexto pessoal ou da minha prática clinica) se tornaram, usando uma expressão gestáltica, importantes FIGURAS no imenso FUNDO existencial.

4 de fevereiro de 2013

Abordagem junguiana do sofrimento - Parte 2


(Recomendo a leitura de "Abordagem junguiana do sofrimento - Parte 1" antes da leitura deste post, que é um acréscimo ao primeiro texto, no qual a perscpectiva junguiana do sofrimento é melhor explicitada).
 
Meias verdades
Meias vontades
 Meias saudades
                 Viver pela metade é ilusão
Tire suas meias
        Ponha o pé no chão 
                                                                       (Augusto Barros)

Complementando o que foi discutido no post "Abordagem junguiana do sofrimento - Parte 1", julgo importante refletir sobre o que James Hollis pontuou como sendo "sofrimento não autêntico" e  "sofrimento autêntico". Tendo em vista a importância de "tirar as meias e pôr os pés no chão", pensemos sobre o que significa sofrer uma dor de forma autêntica sem criar novas dores, novos sofrimentos "em cima" das chagas mais profundas...  

Antes de qualquer exposição sobre  a significação dada por Hollis para o que venha a ser o sofrimento autêntico e o não autêntico, vale refletir sobre o adjetivo escolhido para qualificar tão importante substantivo para o dicionário da vida: o sofrimento. 

A autenticidade, de acordo com o dicionário Houaiss, é a qualidade de tudo aquilo que é verdadeiro,  legítimo, adequado, genuíno. Em um primeiro momento, poderíamos nos perguntar: como pode haver um sofrimento que não seja legítimo, verdadeiro? Se na clinica psicológica todo sofrimento (grande, pequeno, simples, complexo, antigo ou novo) deve ser respeitado, acolhido e considerado como verdadeiro, como poderíamos dividir a experiência dolorosa de um indivíduo em autêntica ou não autêntica?
A qualidade de verdadeiro a qual Hollis se refere tem uma acepção especial no contexto de sua diferenciação do sofrimento e espero que esse sentido específico dado a palavra "autêntico" fique claro ao londo da minha exposição.

O "sofrimento não autêntico" é consequência de uma forma de vivenciar os problemas baseada na fuga. Dá-se, então, que diante dos problemas, várias defesas contra a vivência da experiência dolorosa e traumática são acionadas. São subterfúgios, evasivas ou soluções inadequadas/ineficientes que fazem com que o confronto autêntico com a dor seja anulado ou eternamente postergado. Importante frisar que o intuito de "fugir" e "criar defesas" contra as intempéries existenciais é, em essência, o de curar as feridas abertas, mas o resultado de tal estratégia é a geração de mais sofrimento. 

Como escreve Hollis “sem o sofrimento, que parece o requisito epifenomenal para o amadurecimento psicológico e espiritual, permaneceríamos inconscientes, infantis e dependentes. No entanto, muitos dos nossos vícios, apegos ideológicos e neuroses são maneiras de fugir ao sofrimento” (p.10). Ironicamente, gerando outros tantos! E prossegue o autor, que apesar de retratar uma realidade norte-americana, nos fala, em essência, de uma realidade universal: 
 "Um em quatro norte-americanos se identificam com sistemas de crenças fundamentalistas, buscando dessa forma aliviar sua jornada com valores simplistas, preto no branco, subordinando a ambiguidade espiritual à certeza de um líder e à oportunidade disponível de projetar a ambivalência da vida sobre seus semelhantes. Outros vinte e cinco por cento se entregam a algum tipo de vício, anestesiando momentaneamente a angústia existencial, apenas para vê-la implacavelmente retornar no dia seguinte. Os restantes escolheram ser neuróticos, ou seja, criar uma série de defesas fenomenológicas contra os ferimentos da vida" (Hollis, p.10).

Nesse contexto, o papel da terapia não é remover  de imediato o sofrimento, mas sim examiná-lo. O intuito é o de liberar a energia vital/psíquica que fica aprisionada na repetição incessante de padrões disfuncionais para que ela flua em direção a uma consciência ampliada capaz de sustentar as dolorosas contradições da vida, as angústias e as inevitáveis discrepâncias entre o que queremos e o que dispomos na realidade externa. Do contrário, permaneceremos fugindo, negando ou se vitimizando.

O "sofrimento não autêntico" é, em linhas gerais, aquele que, de uma forma ou de outra, encerra a alma em uma reação excessivamente ponderada, insegura e exitante diante da complexidade inerente à vida. É não autêntico, não verdadeiro por não ser profícuo, por não conduzir ao crescimento e por estar atrelado a (e ser conseqüência de) comportamentos que retardam o contato com a verdadeira área geradora de dor e angústia. Os sofrimentos advindos, por exemplo, dos vícios, da unilateralidade ideológica e das neuroses são, poderíamos dizer, de segunda ordem...o sofrimento primeiro, legítimo, aquele que deve ser melhor considerado e trazido a consciência, é aquele que se esconde atrás da motivação inconsciente em recorrer a estas estratégias amortecedoras: vício, apego ideológico, neurose, dentre tantos outras formas de fuga...

Isto posto, é possível entrever o que venha a ser o "sofrimento autêntico": uma reação realista às ásperas arestas da existência!

"Jung observou que o opus, o trabalho da alma, consiste em três partes: ‘insight, perseverança e ação’. A psicologia, comentou ele, só pode ajudar a fornecer o insight. Depois disso, vem a coragem moral de fazer o que precisamos e a força para suportar as consequências” (Hollis, p.21). 

O cumprimento do que Jung chamou de “obrigação moral” é o compromisso em assumirmos nossa responsabilidade perante tudo o que descobrimos e aprendemos no contato com o nosso inconsciente, fonte inesgotável de sabedoria. É vivermos aquilo que percebemos, é vivenciar no "mundo aqui em cima" o que recebemos através das percepções advindas do contato com a riqueza "do mundo subterrâneo". 
"O Inconsciente é natureza que nunca engana: só nós nos enganamos"
( C.G. Jung, Símbolos da Transformação, p. 54)   

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