Este é um espaço para a reflexão de temas que em algum momento e por alguma razão (do meu contexto pessoal ou da minha prática clinica) se tornaram, usando uma expressão gestáltica, importantes FIGURAS no imenso FUNDO existencial.

24 de maio de 2015

Palavra presa é tumor, palavra líquida é VIDA



Sinto que a filósofa capixaba Viviane Mosé expressou, em forma de poema, o que Lowen desenvolveu em seu livro Alegria: a entrega ao corpo e à vida.

Concordo com Mosé: as pessoas adoecem por "gostarem" de palavra presa. Muitas de nossas doenças nascem da nossa obsessão pelo controle. Nascem do nosso "gosto" em seguir acreditando (ou tentando fingir para os outros) que somos invulneráveis, inatingíveis, inabaláveis. Nascem da crença de que somos (ou temos que ser) bonzinhos demais e que não podemos soltar "aquela" palavra que está na ponta da língua. Nascem da crença de que mesmo não soltando-a, ainda assim, somos muito maldosos, pois no íntimo sabemos que ela continua ali, talvez não mais na ponta da língua, porém engasgada na garganta ou alojada de forma indigesta no estômago.

Invulnerabilidade, indiferença e bondade absoluta são irrealidades que a palavra presa tenta tornar reais. E é claro que o projeto está fadado ao fracasso. Palavra presa gera adoecimento (físico ou emocional) e se há alguma sensação de segurança na não expressão dos sentimentos, ela é ilusória.

Adoecemos por "gostar" de acreditar que ao nos desligarmos de nossos corpos e das nossas emoções estaremos protegidos. Ledo engano! Cultivar palavra presa é cultivar a ilusão da supremacia do ego sobre o corpo e as emoções.

Toda palavra presa limita a motilidade do nosso corpo, que se tenciona cronicamente com a energia presa dos sentimentos reprimidos. Habitar uma casa/corpo entulhada de emoções reprimidas é viver com muito pouco espaço para a alegria. Reduzimos nossa liberdade, nossa auto expressão, nossa vitalidade e a qualidade do nosso ser e estar no mundo e nas relações.

As emoções são correntes de energia que se movem pelo corpo, são movimentos ou impulsos dentro do corpo que geralmente resultam em alguma ação. Um ato, uma expressão, uma palavra... E palavra boa é palavra líquida, escorrendo, fluindo.

Esse estado de fluidez, liberdade e espontaneidade é uma condição natural que perdemos ao longo do tempo, um estado que  experienciamos na tenra infância, quando inocentes e livres não tínhamos inibições ou culpas pelos nossos sentimentos. Éramos, consequentemente, mais receptivos ao sentimento da alegria. E como pontua Lowen, alegria significa nada mais e nada menos do que estar com o coração aberto para as emoções, prazerosas ou dolorosas, permitindo que fluam e se expressem livremente. Só na abertura conseguimos recuperar a alegria que foi maculada pelas circunstâncias que nos frustraram e trouxeram dor ou tristeza. Lutar contra elas é em vão, nenhum sentimento deixa de existir ou de atuar pela repressão. Luta e alegria são incompatíveis. Uma criança pequena é capaz de se incendiar de raiva num minuto e no minuto seguinte transbordar de felicidade. Ela não se prende a dor: sente, expressa e deixa ir.

Essa autenticidade, porém, logo é cerceada, reprimida, punida e "rotulada" pelos pais e educadores como sendo muito perigosa: "Que menina feia você é, ninguém vai gostar de você assim!"

Controlar  a expressão de nossas emoções mais fortes torna-se, então, sinônimo de pertencimento. Afinal, qual criança suporta a rejeição ou a ameaça da retirada do amor pelos pais? Queremos todos ser "bons meninos", queremos ser amados e precisamos dessa confirmação/aceitação para sobreviver, ao menos na infância. Diante do medo da rejeição, a "solução" que a criança encontra é passar a sentir culpa e vergonha dos seus impulsos naturais. Em nome da sobrevivência, optamos pela repressão dos nossos sentimentos.
"Eliminamos os sentimentos tencionando o corpo e restringindo nossa respiração, mas ao fazer isso eliminamos também a possibilidade de alegria. (...) embalsamamos o passado em nossos corpos, o passado continua vivo na tensão. Aliviar a tensão permite-nos dar um passo para nos livrarmos do passado. Mas a tensão só pode ser aliviada se a pessoa expressa o sentimento que está contido na tensão" (Lowen, Alegria, p.59)
A tensão nos maxilares, por exemplo, pode estar relacionada com a repressão dos impulsos de chorar ou morder. As tensões nos músculos do ombro podem denotar o quanto a expressão da raiva está bloqueada. A tensão que circunda  a cabeça na base do crânio e que se propaga pela articulação temporomandibular é a principal resistência à entrega, é o principal mecanismo por meio do qual a pessoa se agarra ao controle. Independente de onde a tensão está localizada, sua principal função é bloquear a expressão. Enrijecemos o corpo para bloquear os impulsos ameaçadores que não ousamos expressar e, assim, imobilizamos e perdemos o contato com certas áreas do nosso corpo e também da nossa psique, pois corpo e mente são uma unidade.

"A tensão crônica é o equivalente físico do medo" (Lowen, Alegria, p. 41).  E o medo da punição e da rejeição talvez seja o responsável majoritário pelo nosso "gostar" de palavra presa. Vivemos num conflito entre expressar o que sentimos e o medo de fazê-lo. Temos medo da expressão, temos medo da retaliação, mas o nosso maior medo é o dos nossos próprios sentimentos, que com o processo de "educação" passaram a ser vistos como ameaçadores e perigosos. 
Tensão é prisão. Prisão é pessoa endurecida, sobrecarregada por palavras presas, por sentimentos calcificados. A vida é um processo fluido que se torna parcialmente congelado em estados de rigidez, que são estados de tensão. Em alguns casos, o choro funcionará como um degelo, em outros, o estado congelado só poderá ser transformado pelo calor - o calor da raiva.
Como entoa Mosé: dor endurecida é tumor, raiva endurecida é tumor, alegria endurecida é tumor, pessoa endurecida é tumor. Palavra boa é palavra liquida escorrendo em estado de lágrima. Lágrima é dor derretida, lagrima é raiva derretida, lagrima é alegria derretida, lágrima é pessoa derretida.
O choro é uma emoção que alivia. Chorar não muda o mundo lá fora, mas muda o mundo aqui dentro, apazigua a tensão e a dor.
"(...) O choro é como a chuva do céu que fecunda a terra (...) e certamente precisamos de uma chuva leve regularmente para manter nosso planeta verde e nossas almas lavadas" (Lowen, Alegria, p. 58).
A raiva é uma emoção restauradora e protetora, "é uma força da vida positiva que tem fortes propriedades curativas" (Lowen, Alegria, p. 91). Ela nos protege das ameaças externas e assegura e restabelece nossa integridade. É uma reação natural em situações que ferem ou ameaçam nossa integridade ou liberdade e, assim sendo, a capacidade de senti-la e expressa-la adequadamente é sinal de saúde.
Sentir e expressar adequadamente! Seja qual for o sentimento, esse é o caminho para amolecermos os poemas endurecidos do corpo e resgatarmos nossa alegria. Alegria enquanto entrega ao corpo e à vida.
"A alegria pertence ao reino das sensações corporais positivas: não é uma atitude mental. Não se pode decidir ser alegre. As sensações corporais positivas começam partindo de uma linha de origem que pode ser descrita como 'boa'. O seu oposto é sentir-se 'mal', o que significa que, em vez de uma excitação positiva, há uma excitação negativa de medo, desespero ou culpa. Se o medo ou desespero for muito grande, a pessoa reprimirá todo sentimento, caso em que o corpo se torna insensível ou sem vida. Quando os sentimentos são reprimidos, a pessoa perde a capacidade de sentir, que é a depressão, um estado que infelizmente pode torna-se um modo de vida. Por outro lado, quando a excitação prazerosa aumenta, a partir da linha de origem da sensação boa, a pessoa conhece a alegria. Se a alegria transborda, torna-se êxtase. Quando a vida do corpo é forte e vibrante, o sentimento, assim como o tempo, é variável. Podemos estar sentindo raiva num momento, depois afeto, e chorar a seguir. Assim como o sol pode aparecer depois da chuva, a tristeza pode transformar-se em prazer. Essa mudança de humor, assim como uma mudança no tempo, não compromete o equilíbrio básico da pessoa. As mudanças acontecem na superfície e não perturbam as pulsações profundas que proporcionam uma sensação de bem-estar à pessoa. A repressão do sentimento é um processo de insensibilização que diminui a pulsação interna do corpo, sua vitalidade, seu estado de excitação. Por esse motivo, reprimir um sentimento é reprimir todos os outros. Se reprimimos nosso medo, reprimimos nossa raiva. A repressão da raiva resulta na repressão do amor (Lowen, Alegria, p.20).
Me lembrei daquela expressão "mas vale um pássaro na mão do que dois voando". É claro que este provérbio é polissêmico, como todos os outros, e talvez ele nunca tenha sido evocado com a acepção que me ocorreu agora. Mas aproveitando o ensejo de não cultivar palavra presa, expresso o que senti ao me recordar dele:
Se, nesse momento, o que está "em suas mãos" é a tristeza, é mais seguro ficar com ela. Sentir, expressar e dar passagem...  É falsa a sensação de segurança que advém da luta pelo controle dos sentimentos. É preferível encarar o sentimento real que está nos habitando aqui e agora do que lutar para negá-lo. Diante do esforço para reprimir a tristeza  podemos nos enrijecer ao ponto de prejudicarmos a nossa a capacidade para sentir também a alegria. Fugindo de um, podemos perder os dois! Mas vale ficar com a tristeza, do que perder a capacidade de sentir... tanto a tristeza quanto a alegria!
Essa perspectiva pode parecer absurda num primeiro momento, mas no texto Abordagem junguiana do sofrimento- parte 1 elaborei um pouco mais sobre a importância de atravessarmos nossos "pântanos escuros", lançando mão da coragem e do fôlego que obtemos quando abandonamos a ilusão de que a vida é, ou deveria ser, composta apenas por "campinas ensolaradas". A verdade é que        
"Assim como o dia não existe sem a noite, nem a vida sem a morte, a alegria não pode existir sem a tristeza. Há dor na vida, assim como prazer, mas podemos aceitar a dor desde que não estejamos presos a ela" (Lowen, Alegria, p.19).
Todos nós fomos, em alguma medida, profundamente feridos na infância. Carregamos dor em nossos corpos e temos medo de cair, ao encararmos nossas antigas feridas, em desespero mortal. Mas se nos fechamos para a dor, inevitavelmente acabamos nos fechando também para o prazer. Não dá para ficar só com um dos lados da moeda. A vida é um ciclo, uma alternância de opostos. Podemos aceitar a noite na medida em que sabemos que o dia uma hora nascerá.
Todos os sentimentos são legítimos. Eles são a vida do corpo e condenar qualquer sentimento é condenar a vida. Podemos, em nome da harmonia social e do bem-estar coletivo, valorar atos e comportamentos como "certos" ou "errados", mas nunca um sentimento. Por isso, tal como Mosé, eu também tenho apreciado o pensamento chão, os poemas que nascem do pé, os sentimentos expressos com o pé no chão.
Estar com os pés no chão é estar em contato com nossa realidade externa e interna, com a realidade do corpo, dos sentimentos e emoções. É estar enraizado, presente no aqui e agora. É  respirar livremente, fazer contato com os olhos e expressar através da voz e dos movimentos o que pulsa em nosso coração.
O senso de segurança, o eixo e o centramento necessários para  que consigamos estabelecer relacionamentos saudáveis dependem de uma percepção realista do mundo externo e de nós mesmos. Lowen associa o estar com o pés no chão  (grounding) com a capacidade de sustentar nosso espaço,  nossas ideias, opiniões e pontos de vista. Estar sobre os próprios pés significa sentir-se independente e livre.

Liberdade é o oposto de controle e tensão, porém não é o oposto de autodomínio. Autodomínio não é sinônimo de controle, não é sinônimo de palavra presa. Autodomínio significa que o indivíduo está em contato consigo mesmo, sabe o que sente, não tem culpa ou vergonha pelo que sente e é capaz de expressar-se de modo apropriado para promover seus maiores interesses. Está no comando de si mesmo, no sentido de que está livre dos controles inconscientes decorrentes do medo de ser ele mesmo; livre das tensões musculares que bloqueiam a auto expressão e limitam sua auto percepção consciente; está em sintonia com a auto aceitação e com a liberdade de ser (Lowen, Alegria).  

3 de janeiro de 2015

2015

O clima coletivo de final/início de ano é sempre de planos, expectativas e promessas. Li uma mensagem, dentre as várias que circulam nesse período, que me fez refletir sobre o nosso hábito de desejar, para nós mesmos e para nossos queridos, um "Feliz Ano Novo". 

É claro que o desejo de que o ano seja bom e feliz é totalmente compreensível, mas a verdade, como bem escreveu Maurício Neubern (um excelente professor que meu deu aulas na graduação), é que o ano em si não nos trará nada de novo ou de bom.

2015 não lhe fará mais feliz.
2015 não lhe trará mais amigos, nem preservará os que você tem.
2015 não lhe trará mais amor.
2015 não lhe fará perdoar pessoa alguma.
2015 não lhe trará saúde.
2015 não lhe poupará os sofrimentos.
2015 não lhe abrirá caminhos novos.
2015 não lhe fará mais fiel aos compromissos maiores.
2015 não lhe fará mais próspero, nem com mais sucesso.
2015 não transformará sua vida.
2015 não lhe ensinará coisa alguma.
Mas, se você tiver a coragem de aceitar a si mesmo, de cumprir com o que seu coração fala, mesmo que indo contra o mundo inteiro; se você topar os desafios para os quais você nasceu e tiver a fé para se deixar conduzir pelas forças maiores; se você aceitar se tornar o ser humano um dia projetado na mente de Deus,
Então
2015 lhe trará grandes amigos e renovará os que já entraram em sua vida.
2015 lhe fará uma pessoa mais amorosa.
2015 lhe ensinará a ver o mundo com fé.
2015 lhe dará disposição e sentido para trabalhar.
2015 lhe trará saúde do corpo e da alma.
2015 lhe ensinará a fazer melhores opções.
2015 transformará suas dores em ensinamentos.
2015 lhe abrirá as portas do perdão.
2015 lhe conduzirá para ser ético e bom, independente das circunstâncias.
2015 lhe fará mais próspero em vários sentidos.
2015 lhe ensinará a colocar o sopro de sua alma em cada ação que fizer e a viver cada segundo, aqui, presente. E encontrar sentido na vida.
2015 será seu mestre em leveza e alegria.

(Maurício Neubern, num post do facebook)

Essas palavras me conduziram para um novo ponto de vista: o mais sensato e realmente fecundo não é desejar ou esperar que o "cenário" seja feliz, mas sim que o "protagonista" possa ser feliz em sua capacidade de dar vida e sentido ao seu cenário, tal como ele se apresenta aqui e agora. A expectativa de que o ano seja bom, em certo sentido, é ilusória. Precisamos abrir mão da ilusão e assumir plena responsabilidade pelo ano que se inicia. Nosso clássico voto "Feliz 2015 para você" deveria, como sugeriu Maurício, ser substituído por "Feliz você em 2015". Dentro da lógica da causa e efeito, poderíamos até dizer que somos a causa e 2015 o efeito!
"(...) a criança dentro de vocês deseja que tudo seja da forma que ela quer, do jeito que ela quer e na hora em que ela quer. Mas vai além disso. Isso implica também ter total liberdade sem responsabilidade. Vocês podem não ter consciência de que desejam exatamente isso. Mas tenho certeza de que, ao examinarem algumas de suas reações e se perguntarem o que elas realmente significam, quando chegarem à raiz delas, sem dúvida descobrirão que essa parte de vocês quer exatamente isso. Vocês querem, acima de vocês, uma autoridade benevolente que conduza suas vidas de todas as formas do jeito que vocês desejam. Vocês querem total liberdade com relação a tudo, vocês querem tomar decisões e fazer escolhas livremente. Se elas forem acertadas, o crédito é de vocês. No entanto, vocês não querem ser responsáveis por nada de ruim que aconteça. Então, vocês se recusam a ver a ligação entre um acontecimento e suas próprias ações e atitudes. Vocês encobertam tão bem essas relações de causa e efeito que, depois de um certo tempo, é preciso realmente um grande esforço para trazê-las à tona (Palestra do Guia Pathwork nº 60 / O abismo da ilusão - utopia - liberdade e auto responsabilidade).

Seja lá como for este ano que se inicia, no cotidiano percurso da individuação, e dentro da perspectiva da auto-responsabilidade, quem deve ser feliz, leve ou próspero somos nós, os senhores de nossas vidas e destinos, os únicos verdadeiramente responsáveis pelo nosso céu e inferno. Que possamos, então, estar de braços e corações abertos para tudo o que vier em 2015, cultivando a certeza de que tudo o que vem, chega na medida certa, como mais um tijolinho que podemos utilizar para edificar nossa felicidade. Nas palavras de Rudolf Steiner:
"Temos que erradicar da alma todo medo e temor do que o futuro possa trazer ao homem. Temos que adquirir serenidade em todos os sentimentos e pensamentos a respeito do futuro. Temos que olhar para frente com absoluta equanimidade para com tudo o que possa vir. Temos que pensar somente que tudo o que vier, nos será dado por uma direção universal plena de sabedoria. Isto é parte do que temos que aprender nesta era: viver com plena confiança sem qualquer segurança na existência. Confiança na ajuda sempre presente do mundo espiritual. Em verdade, nada terá valor se a coragem nos faltar. Disciplinemos nossa vontade e busquemos o despertar interior, todas as manhã e todas as noites".
Essa ideia de que devemos diária e corajosamente abraçar os desafios para os quais nascemos e seguir o caminho do coração com auto-responsabilidade e confiança na guiança maior (que não é benevolente nem malevolente, ela simplesmente é, e muitas vezes "escreve certo por linhas tortas") me fez lembrar da  parábola "A cruz e a ponte" e da música "O Alfaiate Supremo". Ambas são, ao meu ver, fontes de inspiração para NOSSA missão de, independe das circunstâncias, afirmar a vida e firmar em nossa existência "o ser humano um dia projetado na mente de Deus". Falam sobre a arte de transformar "bolas de canhão em lindas e lúdicas bolhas de sabão", "nossas penas da vida em maravilhosas penas de pavão" e, assim, irmos, aos poucos, limpando nossa visão para ver que nossa cruz é, na verdade, uma ponte feita sob medida para atravessarmos o abismo que nos separa de quem realmente somos e do que realmente viemos fazer nesta escola/vida (em 2015, 16, 17... até o derradeiro fim dos anos).

 A CRUZ E A PONTE

Certa vez um homem foi visitado por um anjo que lhe disse: 
- Eu vim trazer a sua cruz para que você possa carregá-la na sua jornada. 
Ele pegou a cruz e seguiu a jornada da vida. Depois de muito caminhar, encontrou um homem extremamente persuasivo que lhe perguntou: 
- O que você está fazendo com esta cruz aí? Está maluco? Ela deve ser muito pesada.
 E ele respondeu: 
- Não estou maluco não, cada um deve carregar a sua cruz. Mas ela realmente é pesada.
- Então por que você não corta um pedaço do pé da cruz? Vai ficar mais leve.
- Eu não posso fazer isso, é a minha cruz, eu tenho que carregá-la.
- Que besteira. Corta só um pedacinho, ninguém vai saber. Assim vai ficar mais leve para você carregar.
E o homem o convenceu de cortar um pedaço.
- Viu, não ficou mais leve?
- É, você tinha razão, só um pouco não vai fazer mal.
E ele continuou seguindo a sua jornada. Lá na frente, eis que ele encontra novamente aquele homem:
- Você continua carregando isso aí? Achei que tivesse desistido.
- Sim, eu continuo carregando a minha cruz.
- Mas ela deve estar muito pesada. Por que você não corta mais um pouco? Vai ficar mais leve.
- É, pode ser, não doeu nada da outra vez.
- Vamos cortar. Só que dessa vez vamos cortar um pouco mais pra ela ficar bem mais leve.
Ele concordou em cortar e depois seguiu sua jornada, carregando agora uma minúscula cruz. Muito tempo depois ele avista a cidade maravilhosa, cheia de ouro, pedras preciosas, prata. Era a visão mais maravilhosa que ele já teve em toda a sua vida. Era tão iluminada e brilhava tanto que não precisava do sol. Quando sem esperar ele se depara com um abismo e tamanho era o desespero que ele começa a gritar: 
- Me ajudem, quero atravessar, socorro alguém, por favor, me ajude, quero entrar na cidade. 
Cansado de tanto gritar, ele vê do outro lado do abismo o anjo, aquele que lhe entregou a cruz. E o anjo pergunta:
- O que você está  fazendo aí do outro lado? Por que você ainda não atravessou?
- Como? Não vê o abismo que nos separa?
- Sim vejo, respondeu o anjo
- Então, como eu vou atravessar?
- Onde está a ponte que eu te entreguei?
- Ponte? Você me entregou uma cruz e ela está aqui comigo.
E o anjo disse:
- Então, coloque-a no meio do abismo, porque o tamanho dela é exato para que você possa atravessar.
O homem analisou a largura da vala, comparou-a com a sua cruz e olhou desolado para o anjo. Mas este apenas lhe disse:
- Cada um só pode atravessar pela própria cruz. É uma pena, mas você terá que voltar e juntar todos os pedaços serrados, reintegrá-los e trazer a cruz inteira.


"As coisas já são o que são e agora somos nós que precisamos ser sãos!"

10 de dezembro de 2014

O potencial libertador da criança interna


"Em todo adulto espreita uma criança - uma criança eterna, algo que está sempre vindo a ser, que nunca está completo e que solicita cuidado, atenção e educação incessantes. Essa é a parte da personalidade humana que quer desenvolver-se e tornar-se completa" (Jung, O Desenvolvimento da Personalidade, p. 175)
Após um ano sem escrever no blog, volto, justo no mês do menino Jesus, motivada a falar do mesmo tema da última postagem: a criança interior que está soterrada dentro do adulto. Porém, por sentir ser incompleto falar da "criança ferida" sem considerar também a "criança divina", responsável pela nossa natureza criativa, abordarei "o moleque que mora no nosso coração" numa perspectiva um tanto diferente da do último texto.

Ficou claro no post "LibertAÇÃO: os complexos afetivos e a força de nos reimaginarmos como maiores que o nosso passado" que as experiências insatisfatórias da primeira infância são responsáveis por muitos dos transtornos na vida adulta. Todos nós carregamos dolorosas lembranças de cenas infantis traumáticas que contém uma intensa carga afetiva, um forte magnetismo e uma grande influência em nossas vidas adultas. É inegável a correlação entre trauma infantil, distorções futuras da realidade e sofrimento. É inegável, também, que para desfrutarmos de uma vida mais significativa e vivermos uma realidade menos distorcida por nossos complexos, devemos ouvir e acolher nossa criança interior negligenciada. Mas buscar o contato com ela não significa apenas investigar as teias psíquicas/emocionais que ligam as dificuldades atuais às cenas traumáticas da infância. O reencontro como nossa criança interior é, também, uma oportunidade para darmos vazão à natureza lúdica e espontânea da criança que ainda nos habita.

A parte infantil de nossa personalidade é dual. "O eu infantil é espontâneo, criativo, brincalhão, sensível, reativo emocional e fisicamente, e cheio de prazer, deslumbramento e amor. (...) Mas a criança também é egocêntrica, exigente, dependente, irresponsável, não discriminativa, caótica, imatura e supersticiosa" (Thesenga, O Eu sem Defesas, p. 79). Podemos ver o "eu criança" operando em nós, adultos, nessas duas facetas. Ele pode interferir tanto limitando percepções e escolhas quanto nos oferecendo novas e criativas formas de perceber e escolher.  

Como tudo o que existe possui uma dupla face, é fato que o contato com nossa criança interna nos conduz tanto à revivência das dores, traumas e abandonos infantis, quanto à revivência de nossa inocência, espontaneidade, encantamento e criatividade. Trabalhar com nossa  criança interior exige de nosso eu adulto uma dupla habilidade: a de ser "aluno/aprendiz" e "professor/pai". Temos muito a ensinar e a aprender com nossa parte infantil. Podemos nos nutrir das energias criativas e espontâneas do eu criança e devemos ajudar no amadurecimento de seus aspectos não desenvolvidos, imaturos e egoístas. 

Lowen, no livro Bioenergética, descreve o adulto como sendo uma pessoa consciente das possíveis consequências do seu comportamento e que assume responsabilidade sobre elas. Mas ressalta que só se é um adulto saudável, um ser humano integrado e verdadeiramente consciente, quando o senso de realidade e responsabilidade também incluem a necessidade e o desejo de intimidade e amor, a capacidade de ser criativo, a liberdade para se divertir e o espírito de aventura. Se o adulto "perde o contato com o sentimento de amor e intimidade que ele conheceu enquanto criança, com a imaginação criativa da infância, com suas brincadeiras e divertimentos e com o espírito de aventura e romance que marcou a sua juventude, ele será uma pessoa estéril, rígida e intratável" (Lowen, Bioenergética, p. 53).

A criatividade, a confiança, a espontaneidade, a simplicidade, a intuição e a capacidade de conceber a vida de forma mais positiva e lúdica são forças que nos habitam. Elas pertencem à parte infantil de nossa personalidade e dão suporte à nossa parte adulta. Como canta Milton, "toda vez que o adulo balança, toda vez que a tristeza me alcança, o menino vem pra me dar a mão..."


"...E me fala de coisas bonitas
Que eu acredito
Que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito
Caráter, bondade, alegria e amor
Pois não posso
Não devo
Não quero
Viver como toda essa gente
Insiste em viver
E não posso aceitar sossegado
Qualquer sacanagem ser coisa normal"
                                                      


Recorrer à criança interior é buscar força renovada para lidar com às pressões externas e internas, é integrar a dimensão lúdica à vida adulta e resgatar a confiança em nosso potencial criativo. Se ignoramos ou obstruímos o acesso à nossa fonte criativa, tornamos a vida por demais concreta, dura e literal. Mas, se lançarmos mão dos recursos criativos de nossa criança interior poderemos encontrar saídas inusitadas para os inúmeros conflitos da vida cotidiana.

Esse poder criativo existe enquanto potencial em todos nós, mas é necessário, como escreve Brennan, um empenho consciente para que as orientações de nossa "criança sábia" possam emergir e transpor a mente racional, unilateral e obtusa, tão superestimada por nossa sociedade:
"Existe no interior de toda personalidade humana uma criança. (...) Essa criança interior é muito sábia. Sente-se ligada a toda a vida. Conhece o amor sem fazer perguntas. Mas é encoberta quando nos tornamos adultos e tentamos viver apenas de acordo com a nossa mente racional. Isso nos limita. Urge descobrir a criança interior para começar a seguir a orientação. Você precisa voltar à sabedoria amante, confiante, da sua criança interior para desenvolver a capacidade de recebê-la e segui-la. Todos ansiamos por liberdade - e através da criança a lograremos. Depois de conceder mais liberdade à sua criança, você poderá iniciar o diálogo entre a parte adulta e a parte infantil da sua personalidade. O diálogo integrará a parte livre e amante da sua personalidade com o adulto sofisticado" (Brennan, Mãos de Luz, p. 36).
Essa integração resulta em crescimento/desenvolvimento emocional e psicológico. Na psicologia junguiana, a criança, enquanto símbolo, guarda estreita relação com o processo de individuação. Por ser a portadora da força criativa capaz de promover a religação do ego com as orientações do Self, a criança é símbolo do desenvolvimento rumo à autonomia e à realização. 


Para Jung, o símbolo da criança traz em si a ideia de potencialidade, de realização da potência. Em A Psicologia do Arquétipo da Criança, ele descreve os poderosos atributos da criança simbólica:
"é uma personificação de forças vitais, que vão além do alcance limitado da nossa consciência, dos nossos caminhos e possibilidades, desconhecidos pela consciência e sua unilateralidade, e uma inteireza que abrange as profundidades da natureza. Ela representa o mais forte e inelutável impulso do ser, isto é, o impulso de realizar-se a si mesmo" (Jung, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, p. 171, parágr. 289). 
A criança simboliza a união dos opostos, a síntese, a integração de conteúdos inconscientes. É um símbolo que interliga o passado e o futuro, o frágil e o poderoso, o tolo e o sábio... O arquétipo da criança tem, portanto, um efeito redentor, capaz de compensar ou corrigir as inevitáveis unilateralidades ou extravagâncias da consciência. Quando emerge num adulto, por exemplo num sonho, anuncia o nascimento de uma nova consciência, que contém a chave para abrir a porta de saída de um conflito, com o qual a mente consciente unilateral não estava sabendo lidar. 
"Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto fraqueja
Ele vem pra me dar a mão"
 A criança arquetípica, assim como outros motivos que também possuem a qualidade de perfeição (mandala, flores, pedras preciosas), carrega em si uma força libertadora, um convite para que façamos contato com nosso potencial de síntese, de unidade e de auto realização. Um convite para que nos inspiremos nas qualidades características desse arquétipo: sinceridade, pureza, autenticidade e abertura para o futuro.
"Um aspecto fundamental do motivo da criança é o seu caráter de futuro. A criança é o futuro em potencial. Por isso a ocorrência do motivo da criança na psicologia do indivíduo significa em regra geral uma antecipação de desenvolvimentos futuros (...) A vida é um fluxo, um fluir para o futuro e não um dique que estanca e faz refluir. Não admira portanto que tantas vezes os salvadores míticos são crianças divinas. Isto corresponde exatamente às experiências da psicologia do indivíduo, as quais mostram que a 'criança' prepara uma futura transformação da personalidade. No processo de individuação antecipa uma figura proveniente da síntese dos elementos conscientes e inconscientes da personalidade. É, portanto, um símbolo de unificação dos opostos, um mediador, ou um portador da salvação, um propiciador da completude" (Jung, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, p. 165, parágr. 278).
A criança divina arquetípica que habita nossa psique, a criança real que um dia fomos e a criança ferida dentro de nós são, todas, portadoras de luz, amplificadoras da consciência. É estabelecendo contato com elas que reencontraremos o caminho da auto realização plena. Resgatá-las é tornar a brincar e a criar em nossas vidas, afinal, como bem escreveu a psicodramatista Rosa Cukier (Sobrevivência emocional: as dores da infância revividas no drama adulto), pior do que quebrar o braço na infância brincando de ser Deus, é decidir, por medo de se machucar de novo, parar de brincar de ser Deus! E essa "brincadeira", que nada tem a ver com megalomania, inflação psíquica ou prepotência, é, junguianamente falando, nossa missão de vida mais séria. "Brincar de ser Deus" é realizar, de forma leve, criativa e perseverante, nossa mais árdua tarefa: despir nossa essência divina de todas as camadas que encobrem nosso verdadeiro eu (Self).
Lanterns-3

Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus
Mateus 18:3

19 de setembro de 2013

LibertAÇÃO: os complexos afetivos e a força de nos reimaginarmos como maiores que o nosso passado

  

   No texto A justa medida de valorização do nosso passado, presente e futuro, procurei refletir, baseada nas ideias de Schopenhauer, sobre a importância de darmos a devida atenção e valor ao nosso presente que, como asseverou o filósofo alemão, é o único tempo real e certo. É no presente que vivemos (ou deveríamos viver!) e é nele que, apesar do passado ou das preocupações com o futuro, podemos constantemente nos reinventar. 
   Apesar da importância inalienável do presente, sinto que minhas reflexões foram "justas" com o presente, mas "injustas" (no sentido de insuficientes) com o passado. E como acredito que toda e qualquer supervalorização é irreal e até mesmo perigosa, retorno para refletir melhor sobre a importância do passado em nossas vidas.
   Partirei do básico: os fatos marcantes de nossa história pregressa guardam uma estreita relação com o nosso presente e, consequentemente, com o nosso futuro. Se os subestimamos, aumentamos nossa vulnerabilidade diante da força do passado e diante da força que nos impele à reeditar antigas feridas e protestos. Na tentativa de "ignorar" o passado doloroso, nos tornamos prisioneiros dele por meio da repetição inconsciente. Se supervalorizamos, nos tornamos igualmente prisioneiros, reféns da nossa história e impotentes diante do futuro. A força do passado anula a força de mudança intrínseca ao presente. No entanto, se nos posicionamos adequadamente diante de nosso passado, acessamos a possibilidade de romper com sua tirania. Percebemos, por um lado, que muitas de nossas dificuldades atuais foram geradas pela nossa história de vida e que não podemos fugir delas, pois nunca podemos fugir do nosso passado; mas, por outro lado, percebemos  que não somos meramente reféns: ao invés de fugir podemos reconhecer, encarar e trabalhar com nossas feridas em prol de uma visão de mundo menos condicionada ao que de terrível já pode ter nos acontecido. 
   A infância é um período crucial em nossas vidas e revisitá-la é uma excelente oportunidade de autoconhecimento. Muitas conclusões sobre o funcionamento da vida e dos relacionamentos foram "arquitetadas" na infância, momento no qual a sensibilidade e vulnerabilidade da criança são maiores que sua capacidade de processar "adequadamente" as experiências dolorosas. Essas conclusões infantis, tiradas sobretudo a partir de experiências traumáticas, são tão fortes e sólidas que continuam a atuar na psique adulta. 


 Inicialmente, pode ser bastante perturbadora a ideia de que muito do que pensamos, sentimos e fazemos hoje foi condicionado pela nossa história e está além do nosso controle consciente. Pensar que estamos sujeitos à interferência inconsciente de múltiplas forças internas é uma espécie de afronta a nossa tão cara noção de livre-arbítrio. No entanto, uma maior liberdade de ação e escolha só pode ser minimamente conquistada se reconhecermos que muitas de nossas dificuldades atuais têm raízes no passado. Rememorá-lo com o intuito de investigar as distorções e os padrões de comportamento historicamente construídos é uma atitude que pode liberar, total ou parcialmente, nossos relacionamentos das interferências inconscientes que nos conduzem irrefletidamente às mesmas reações elegidas na infância como "as mais adequadas". 
   A teoria dos complexos de Jung nos ajuda a entender como os eventos do passado, sobretudo os vividos na infância, se tornam fixados e operantes na psique adulta.  Mas o que é um complexo? 
   Para uma melhor compreensão sobre o que é e como age um complexo utilizarei o  exemplo clínico dado por Whitmont no livro "A Busca do Símbolo - Conceitos Básicos de Psicologia Analítica":   
 "Um rapaz veio à procura de ajuda por causa de dificuldades generalizadas em relação às pessoas, ou melhor, a qualquer pessoa que desafiasse sua necessidade compulsiva de dominar qualquer situação, especialmente, é claro, seus superiores no trabalho. Sua ânsia de liderar e de dominar os outros funcionava relativamente bem até que ele sentisse que sua liderança estava de algum modo sendo questionada. Ele interpretava até mesmo a tentativa de alguém para conhecê-lo melhor como uma ameaça à sua autoridade. Qualquer pessoa que tivesse uma aparência de autoridade sobre ele parecia imediatamente insultá-lo e, portanto, ele constantemente achava necessário mudar de emprego. Não havia sido capaz de terminar a faculdade porque era intolerante  com a disciplina exigida. Ele claramente tinha um problema com relação à autoridade e à disciplina e reagia violentamente a elas; no entanto, tinha potencial para tornar-se um excelente líder. Era muito sensível aos sentimentos e às necessidades dos outros - apesar de que, a esta altura, sua sensibilidade trabalhava contra ele, já que o tornava mais apto a retrair-se. A autoridade fascinava-o e repugnava-o ao mesmo tempo; ele não conseguia nem aceitá-la nem exercê-la de modo adequado. Em linguagem psicológica simples, este rapaz tinha um complexo de autoridade. Ele sempre estava preso à autoridade. O rapaz ia direto a ela, ele a combatia e a desafiava, mas sempre se sentia impelido a exercê-la. No entanto, era incapaz de enquadrar-se em qualquer situação comum na qual o exercício da autoridade fosse apropriado, e mais ainda de encarar um desafio real que o exigisse. Nesse tipo de situação é como se uma personalidade autoritária e dividida estivesse dirigindo e ridicularizando o indivíduo em questão, levando-o a encontra o problema da autoridade em toda parte, independentemente de se seu melhor juízo - ou seu 'pior' juízo - e o que é mais importante, ele não sabia que estava sendo dirigido. Qualquer coisa associada, mesmo que remotamente, com a autoridade, sobretudo com a autoridade paterna, punha essa força em movimento, e fazia-o de um modo bastante destrutivo porque, quer ele a encontrasse em outras pessoas, quer ele próprio a exercesse, era certo que problemas surgiriam. Ele hostilizava as pessoas ou era hostilizado por elas, e inevitavelmente punha a culpa nos outros. Parecia que sempre era a outra pessoa que não reconhecia o seu efeito benéfico, e era sempre a outra pessoa que o isolava ou queria derrubá-lo, ou o desafiava, ou o antagonizava" (Whitmont, p.52).
   Whitmont prossegue em suas considerações a cerca do caso demonstrando que o complexo de autoridade deste homem surgiu a partir de experiências dolorosas com seu pai, descrito por ele como uma pessoa cruel, autoritária, injusta e matreira. O pai e a autoridade paterna foram associados à quebra de confiança, à exploração, à crueldade e ao exercício de uma disciplina impiedosa. Então, "qualquer coisa que o fizesse lembrar da forma como havia vivenciado a autoridade lhe provocava terror, perseguia-o e ameaçava-o; naturalmente ele nunca poderia aceitar a disciplina ou a liderança, mesmo quando eram apropriadas" (Whitmont, p.60). Este homem possuía um grande ressentimento em relação à autoridade paterna e respondia a qualquer "situação associada" sempre com a mesma carga emocional do passado (ódio, retraimento, ataque).
   Voltemos, agora, a pergunta inicial: O que é um complexo?
"Imaginemos por um momento que a pisque é um objeto tridimensional como o sistema solar. A consciência do ego é a Terra, terra firme; é onde vivemos, pelo menos durante as nossas horas vígeis. O espaço ao redor da Terra está cheio de satélites e meteoritos, alguns grandes, outros pequenos. Esse espaço é o que Jung chamou o inconsciente, e os objetos com que primeiro nos deparamos quando nos aventuramos nesse espaço são o que ele chamou de complexos" (Stein, Jung: O Mapa da Alma, p.41).
   O inconsciente é povoado por complexos. Semelhantes aos satélites que orbitam um planeta, os complexos circulam em torno do ego. Tal como um meteorito que ao cair na Terra deixa sua marca inequívoca; o complexo, quando irrompe na consciência, tem um tremendo poder de influenciar o Eu e gerar grandes perturbações internas e relacionais. Assim como um meteorito é formado por fragmentos de asteroides, cometas ou restos de planetas desintegrados; o complexo é formado pela reunião de imagens, sentimentos e ideias em torno de um tema central. É como um vórtice que gira ao redor de um centro e atrai para si tudo o que lhe diz respeito. Se o tema central é, por exemplo, o pai; o complexo paterno será o resultado de todas as experiências positivas e negativas com o pai (pessoal e arquetípico). Esta rede de material associado (lembranças, fantasias, imagens, pensamentos) gravita em nosso inconsciente e pode, em determinadas situações, emergir e "tomar a cena". 


   Dizemos que um complexo está "constelado" (expressão comum no léxico junguiano) quando ele está cheio de energia e suas "ondas" são capazes de exercer influências sobre a consciência. O termo "constelação" refere-se, portanto, à criação de um momento psicologicamente carregado no qual a consciência fica perturbada; indica que uma situação exterior desencadeou um processo psíquico que consiste na aglutinação e na atualização de determinados conteúdos. Quando essa rede de associações emocionalmente carregadas a qual o complexo está ligado é ativada, o indivíduo passa a adotar uma atitude preparatória e de expectativa, com base na qual reagirá de forma inteiramente definida (Stein, Jung: O Mapa da Alma). Nossa visão da realidade sofre, portanto, uma considerável distorção e somos automaticamente conduzidos a dar respostas de intenso afeto. 
"Nunca poderemos conhecer o que realmente encontramos no exterior até que tenhamos alguma noção dos complexos que podem colorir nossa visão. Se usamos óculos vermelhos e olhamos para um semáforo, o vermelho que vemos pode estar lá, mas também pode estar apenas nos óculos" (Whitmont, p.57)
   Os complexos são, portanto, padrões peculiares de reação formados a partir da experiência pessoal de cada um com um determinado tema (mãe, pai, inferioridade, superioridade, poder etc). São formados por acontecimentos e traumas da infância, dificuldades e repressões; são resultados de condicionamentos, interações e padrões familiares. São como "personalidades autônomas" dentro da personalidade total; "sub-personalidades" que quando ativadas "desencadeiam uma imagem de quem somos, em que contexto e qual deve ser nossa reação relacionada" (Hollis, Os Pantanais da Alma, p.175). 
   Para descobrir se estamos reagindo a partir de um complexo, ou seja, respondendo à realidade a partir de um condicionamento passado, ou se estamos sendo autênticos diante das novas experiências (tal como elas nos são apresentadas no aqui agora) precisamos conhecer o nosso passado e os meandros de nosso inconsciente. É necessário descer às origens, voltar às cenas primordiais, conhecer os sentimentos dolorosos e negativos que nos conduziram às nossas habituais atitudes defensivas.
   No entanto, para reduzirmos o poder indesejado de um complexo, não basta apenas sabermos os "porquês" e "comos" do passado. Muitas vezes, apesar de já termos adquirido uma boa noção sobre nossas cadeias complexuais, ainda assim, continuamos sendo tragados por elas.  
"Trabalhar com um complexo não é diferente de tentar libertar um velho cavalo de moinho. Durante toda vida ele puxou a grande mó em volta do seu circuito de moagem. Nós o desamarramos, lemos em voz alta para ele sua carta de direitos, mas acordamos na manhã seguinte e vemos o velho cavalo percorrendo o mesmo circuito. (...) À semelhança do cavalo de moinho que é liberado de sua carga, podemos dar seguimento ao nosso mesmo melancólico circuito. A diferença entre nós e um cavalo de moinho é a nossa capacidade de imaginação. (...) Somos limitados por nossos complexos e fadados a repetir os padrões de reação históricos até a ocasião em que conseguimos expandir nossa visão do que é possível - de nos reimaginarmos" (Hollis, Os Pantanais da Alma, p. 173). 
    A capacidade de nos reimaginarmos como maiores que o nosso passado é o que nos diferencia de um cavalo de moinho. Enquanto para ele o passado tem um poder inquebrável - ele continua a repetir o seu circuito porque não consegue romper e escapar dos limites do seu condicionamento histórico; em nós, o passado tem o poder de nos determinar, mas não o de nos limitar em definitivo! Para irmos contra a sua ditadura, é necessário nos alinharmos ao potencial humano criativo, imaginativo, restaurativo... 
   E há que ser ter coragem e humildade, pois não é fácil duvidar dos óculos que usamos há tantos anos e que já estão confortáveis em nosso rosto, apesar de todo desconforto que sua lente constantemente nos impõe! Além do que, foram cuidadosamente "escolhidos" e fixados em nossos olhos por uma grande necessidade de autoproteção. No exemplo dado por Whitmont, aquele rapaz que tinha problemas generalizados com as pessoas e se sentia compelido a reagir sempre defensivamente por ver o problema da autoridade em toda parte, desejava, no fundo e acima de tudo, apenas se proteger da possibilidade de reviver seu drama infantil.
   Assim sendo, começar a questionar nossas verdades e a fidedignidade de nossas avaliações da realidade não é uma tarefa simples, pode gerar medo e uma profunda sensação de fragilidade e inadequação. Como afirma Bert Hellinger (Constelações Familiares - Conversas sobre emaranhamentos e soluções), "os donos da verdade" (que é como nos sentimos quando estamos sob o controle de um complexo) são demasiadamente obtusos e nos fazem lembrar, por exemplo, "as autoridades da igreja que disseram a Galileu que não precisavam olhar pelo telescópio porque já sabiam que não podia existir luas ao redor de Júpiter. Os donos da verdade não se preocupam em saber a verdade" (Hellinger, p. 98).
   Voltemos, agora, a Schopenhauer, quem me inspirou a escrever o primeiro texto sobre "passado, presente e futuro", e à sua ideia de que devemos acolher jovialmente o presente, sem desperdiçá-lo ou estragá-lo com desgostos do passado ou ansiedades em relação ao porvir. 
  A meu ver, essas assertivas de Schopenhauer se aproximam da terapêutica junguiana na medida em que, mesmo quando o ponto de partida da análise é o passado ou o futuro, o ponto de chegada é sempre o presente. Estamos, durante a análise, constantemente envolvidos nas possíveis respostas para as seguintes perguntas:
Para onde minha vida, tal como está sendo vivida hoje, está me conduzido? Para a reedição do passado ou para novas paragens?
A forma como vivo hoje me aproxima ou me afasta do que quero/desejo para o meu amanhã?
Em que medida, ou em que áreas, a forma como respondo à vida hoje está condicionada ao meu passado? Consigo dar novas respostas às situações já conhecidas? Consigo dar respostas adequadas às novas situações? Ou estou preso ao passado, dando sempre velhas respostas às novas  situações?
Qual o sentido, o significado de minhas experiências dolorosas? Qual é a tarefa/mudança que meu sofrimento implicitamente me impõe? Eu a assumo, ou prossigo revivendo (inconscientemente!) antigas feridas e antigos protestos no presente?
    A dor e sofrimento que acompanham a constelação de um complexo negativo são, acima de tudo, verdadeiros convites à mudança. Nossas experiências dolorosas são grandes oportunidade de crescimento e o aqui agora é único tempo possível para empreendermos as transformações necessárias. O presente é como o "meio do caminho", aquele ponto no qual podemos decidir voltar ou seguir; o ponto estratégico que nos fornece um excelente ângulo de visão: podemos olhar para um lado e outro, para o ontem e o amanhã e, assim, aumentar as possibilidades para que novos caminhos sejam trilhados. Essa "mudança de direção" depende, inteiramente, da nossa capacidade de "libertar a ação". Depende da decisão de tirarmos da radiola aquele velho disco riscado, que repete incessantemente o mesmo trecho da música...